Ícone Google
Logo Decisões



Pesquisar em
Doutrina
Boletins
Todas as Áreas
Áreas Específicas
Tribunais e Órgãos abrangidos
Repercussão Geral (STF)
Recursos Repetitivos (STJ)
Súmulas (STF)
Súmulas (STJ)
Matérias Relevantes em Julgamento


Localizar nessa página:   
 

Do ISS ao IBS: uma análise comparativa - O critério material e a definição do fato gerador - José Antônio Patrocínio*

A promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e a subsequente edição da Lei Complementar nº 214/2025 representam um marco na história do sistema tributário brasileiro. A transição do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) para o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) não é uma mera substituição de siglas, mas uma profunda alteração de paradigma.
O presente artigo tem por objetivo analisar, sob a ótica da regra matriz de incidência, as similitudes e, principalmente, as profundas diferenças entre o critério material dos dois tributos.
Para o leitor não familiarizado com a terminologia jurídica, o critério material de um imposto responde à uma pergunta básica: "O que, exatamente, pode ser tributado?".
Ele descreve o fato, a ação ou a situação econômica (como vender um produto ou prestar um serviço) que, ao se concretizar no mundo real, faz nascer a obrigação de pagar o tributo. É a definição do núcleo da incidência tributária. Em outras palavras, é o comportamento da pessoa física ou jurídica no mundo fático que coincide com a norma hipotética. Compreender a mudança nesse critério é, portanto, fundamental para entender as consequências jurídicas e práticas da transformação em curso.

1. O IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS (ISS) E A LÓGICA DA ENUMERAÇÃO TAXATIVA
O ISS, regido pela Lei Complementar nº 116/2003, tem como critério material: "prestar serviços constantes da lista anexa".
Essa estrutura revela a principal característica - e fragilidade - do ISS, qual seja, sua natureza taxativa e restritiva.
Neste contexto, resumidamente, duas são as condições para a atividade econômica sujeitar-se à incidência do ISS:
a) o seu exercício vincular-se, de forma expressa ou tácita, a uma obrigação de fazer;
b) esta obrigação de fazer constar da lista de serviços instituída pela LC 116/2003.
Esse modelo gerou, ao longo de décadas, um ambiente de elevada insegurança jurídica, que culminou com expressivo aumento do contencioso tributário, cujas causas, dentre outras, são as seguintes:
Conflito de Competência com o ICMS: A distinção entre "serviço" (obrigação de fazer, tributada pelo ISS) e "mercadoria" (obrigação de dar, tributada pelo ICMS) sempre foi uma das mais notórias fontes de litígio no direito tributário brasileiro. Operações híbridas, como a venda de software, serviços de streaming ou a industrialização por encomenda, ocuparam uma zona cinzenta que alimentou inúmeras disputas entre Estados e Municípios.
Descompasso com a Economia Digital: A lista de serviços, por sua natureza estática, mostra-se incapaz de acompanhar a dinâmica da inovação e o surgimento de novas atividades econômicas, especialmente no setor de tecnologia. Isso cria brechas para a não tributação ou força interpretações extensivas que geram ainda mais litígios.

2. O IMPOSTO SOBRE BENS E SERVIÇOS (IBS) E O PARADIGMA DA BASE AMPLA
Em contraposição, o IBS, instituído pela Lei Complementar nº 214/2025, adota um critério material de base ampla e universal, alinhado aos mais modernos Impostos sobre o Valor Agregado (IVA) do mundo.
Como preceitua o Art. 4º da nova lei, o IBS incide sobre "operações onerosas com bens ou com serviços". A definição de serviço, por sua vez, é residual: é toda operação que não se enquadre como uma operação com bens (Art. 3º, I, 'b').
Essa arquitetura normativa soluciona os problemas históricos do sistema anterior:
Extinção do Conflito de Competência: Ao tributar de forma unificada as operações com bens e serviços, o IBS elimina a fronteira entre o campo de incidência do ICMS e do ISS. A discussão deixa de ser o que se tributa para se concentrar em onde se tributa (critério espacial), que passa a ser o destino.
Segurança Jurídica e Neutralidade: O conceito amplo garante que toda e qualquer manifestação de consumo seja alcançada pela tributação, independentemente de seu nome, de sua forma ou, ainda, da tecnologia empregada. Isso confere segurança jurídica aos contribuintes e neutralidade ao sistema, que não mais criará distorções competitivas baseadas em enquadramentos legais.

3. SIMILITUDES E DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS
Embora ambos os tributos visem onerar o consumo de serviços, suas semelhanças são superficiais quando comparadas às suas diferenças estruturais.
SIMILITUDES
Ambos os tributos não incidem sobre relações de emprego, bem como sobre serviços prestados por membros de conselhos de administração. (Art. 2º, II, da LC 116/2003 e Art. 6º, I e II, da LC 214/2025).
Ambos preveem a não incidência sobre exportações, embora com lógicas e mecanismos distintos.
DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS (CRITÉRIO MATERIAL)
Universo de Incidência:

Fechado vs. Aberto (A diferença central)

ISS: Opera em um universo fechado. A regra é a não incidência. A tributação é a exceção, aplicável apenas ao que está expressamente listado.
IBS: Opera em um universo aberto. A regra é a incidência sobre toda e qualquer operação econômica. A não incidência é a exceção, aplicável apenas ao que está expressamente excluído pela lei. Essa inversão de lógica é a mudança mais fundamental.
Tratamento de Operações com Bens Imóveis:
ISS: A tributação é fragmentada. O ISS alcança apenas os serviços relacionados a imóveis (ex: construção, intermediação, administração). A alienação do imóvel em si não é fato gerador do ISS. A locação de bens imóveis, por sua vez, é historicamente um campo de disputa, mas o que prevalece hoje é o entendimento de que não se sujeita ao ISS.
IBS: A tributação é unificada e completa. O Art. 3º, I, 'a', inclui "bens imóveis" no conceito de bens. O Art. 252 detalha a incidência sobre alienação, locação, cessão de direitos e arrendamento de imóveis. Isso representa uma expansão massiva do critério material, trazendo todo o mercado imobiliário para dentro da tributação sobre o consumo.
Tratamento da Locação de Bens Móveis: A Superação de um Paradigma Jurisprudencial
A forma como cada tributo lida com a locação de bens móveis (veículos, máquinas, equipamentos, etc.) expõe uma das mais profundas rupturas entre os dois modelos.
ISS: O critério material do ISS, como visto, é a "prestação de serviço", entendida pela doutrina e jurisprudência como uma "obrigação de fazer". A locação de um bem móvel, por sua vez, é classificada como uma "obrigação de dar" (entregar a coisa para uso e gozo do locatário). Essa distinção levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a consolidar o entendimento na Súmula Vinculante nº 31, que declara:
"É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis."
Portanto, sob a égide do ISS, toda atividade econômica de locação de bens móveis, um segmento de enorme relevância, ficou em um vácuo tributário, no que tange aos impostos sobre o consumo, não sendo alcançada nem pelo ISS (por não ser serviço) nem pelo ICMS (por não ser circulação de mercadoria) e nem pelo IPI (por não fazer parte do processo produtivo de um bem).
IBS: O IBS supera completamente essa discussão. Seu critério material não se limita a "serviços", mas abrange de forma ampla as "operações onerosas com bens ou com serviços". A nova lei, de forma explícita e inequívoca, inclui a locação no rol de operações tributáveis.
Deveras, pois o Art. 4º, § 2º, II, da LC 214/2025, define como operação onerosa qualquer fornecimento com contraprestação, incluindo o decorrente de "locação".
Como consequência disto, a nova legislação torna a Súmula Vinculante nº 31 inaplicável ao novo sistema. A discussão jurídica não é mais se "locação é serviço", mas se "locação é uma operação onerosa com um bem".
A lei responde afirmativamente, trazendo para a base de incidência do IBS um setor econômico inteiro, que antes não era tributado pelo consumo. Essa mudança representa uma significativa ampliação da base tributável e um passo crucial em direção à isonomia e à neutralidade, ao equiparar, para fins de tributação, as diferentes formas de acesso a um bem (compra ou aluguel).
Incidência sobre Operações Não Onerosas e entre Partes Relacionadas:
ISS: A LC 116/2003 é praticamente silente sobre o tema. A ideia de "prestação de serviço" está intrinsecamente ligada a um "preço", tornando a tributação de operações não onerosas (como uma cortesia ou bonificação) praticamente inviável sob sua ótica.
IBS: A LC 214/2025 possui regras antielisivas sofisticadas em seu critério material. O seu art. 5º prevê expressamente a incidência sobre o fornecimento de brindes, bonificações e, crucialmente, sobre operações não onerosas ou a valor inferior ao de mercado realizadas entre partes relacionadas. Isso impede que grupos econômicos utilizem transações internas para reduzir artificialmente a base de cálculo do imposto.
Tributação da Venda de Ativo Imobilizado:
ISS: A venda de um bem do ativo imobilizado por um prestador de serviços (ex: um computador usado por um escritório de advocacia) não é fato gerador do ISS, pois não se caracteriza como "prestação de serviço".
IBS: O Art. 4º, § 4º, é explícito ao determinar que o IBS incide sobre "qualquer operação com bem ou com serviço realizada pelo contribuinte, incluindo aquelas realizadas com ativo não circulante". Portanto, a venda de um ativo imobilizado passa a ser um fato gerador do IBS, o que representa uma mudança significativa na tributação das operações de uma empresa.
Definição de Importação de Serviços:
ISS: O imposto incide também sobre o serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País.
IBS: O critério é o "consumo" do serviço ocorrer no País (Art. 64). A lei define "consumo" de forma ampla como "utilização, a exploração, o aproveitamento, a fruição ou o acesso". Essa definição é mais moderna e adequada para a economia digital, focando em onde o valor é efetivamente usufruído, o que confere maior segurança jurídica.

4. CONCLUSÃO
A transição do critério material do ISS para o do IBS representa a mudança mais significativa da Reforma Tributária. Abandona-se um modelo fragmentado, litigioso e anacrônico, baseado em uma lista de serviços, por um sistema de base ampla, neutro e alinhado às melhores práticas internacionais.
Para a comunidade jurídica, essa transformação significa o fim de décadas de disputas sobre o enquadramento de atividades e o conflito de competência entre Estados e Municípios.
O foco do planejamento tributário e do contencioso se deslocará para outras áreas, como a correta aplicação dos regimes específicos e a apuração de créditos. Embora a implementação do novo sistema traga seus próprios desafios, a redefinição do critério material de incidência é, inegavelmente, um avanço civilizatório para o direito tributário brasileiro.

 
*José Antônio Patrocínio é Advogado, Consultor Tributário da Thomson Reuters, Professor de ISSQN em Cursos de Pós-graduação e Autor do Livro: "ISS - Teoria, Prática e Jurisprudência - 7ª Edição".