Ícone Google
Logo Decisões



Pesquisar em
Doutrina
Boletins
Todas as Áreas
Áreas Específicas
Tribunais e Órgãos abrangidos
Repercussão Geral (STF)
Recursos Repetitivos (STJ)
Súmulas (STF)
Súmulas (STJ)
Matérias Relevantes em Julgamento


Localizar nessa página:   
 

Do ISS ao IBS: uma análise comparativa - O critério espacial e a disputa entre a origem e o destino - José Antônio Patrocínio*

Dando continuidade à nossa série de análises sobre a Reforma Tributária, este artigo se debruça sobre o critério espacial da regra matriz de incidência. Após discutirmos no artigo anterior o que pode ser tributado (critério material), agora investigamos a questão igualmente crucial: onde o novo imposto é devido?

O critério espacial define o local da ocorrência do fato gerador, determinando qual ente federativo ? Município, no caso do ISS e Estado/Município, no caso do IBS ? possui a competência para arrecadar o tributo. A transição do ISS para o IBS representa, neste aspecto, a superação de um dos mais notórios e litigiosos problemas do sistema tributário brasileiro: a guerra fiscal decorrente da disputa entre a tributação na origem e no destino.

I - O CRITÉRIO ESPACIAL NO ISS: A COMPLEXA DISPUTA ENTRE ORIGEM E DESTINO
A Lei Complementar nº 116/2003 estabelece uma regra geral - local do estabelecimento prestador - que, na prática, é subvertida por uma extensa lista de exceções, criando um sistema dúbio e de alta complexidade.

A Regra Geral da Origem: O Art. 3º, caput, da LC 116/2003, dispõe que o serviço se considera prestado, e o imposto devido, no local do estabelecimento prestador ou, na sua falta, no domicílio do prestador. 

Essa regra, conhecida como princípio da origem, foi o estopim para a chamada "guerra fiscal", na qual municípios competem para atrair as sedes das empresas prestadoras de serviços, oferecendo alíquotas mais baixas, ainda que o consumo efetivo dos serviços ocorra em outras localidades.

As Inúmeras Exceções do Destino: A própria lei, reconhecendo a inadequação da regra geral, estabeleceu, nos 22 incisos, do mesmo Art. 3º, uma longa lista de serviços, cujo ISS é devido no local da execução ou do consumo (princípio do destino). Entre as exceções mais relevantes, destacam-se:
Serviços de construção civil, no local da obra (inciso III);
Serviços de limpeza e conservação de bens, no local da execução (inciso VII);
Serviços de guarda e estacionamento de veículos, no local da prestação (inciso XV);
Serviços de serviços de diversão e entretenimento, no local da execução (inciso XVIII).

Essa dualidade sistêmica transformou o critério espacial do ISS em uma colcha de retalhos, gerando enorme insegurança jurídica e um volume expressivo de demandas judiciais, objetivando definir se uma determinada operação se enquadra na regra geral (origem) ou em uma das exceções (destino).

Adicionalmente, a própria regra geral - estabelecimento prestador - também foi palco de uma longa e árdua disputa judicial. A definição de "estabelecimento prestador" tornou-se o ponto central da guerra fiscal. Muitas empresas, buscando vantagens tributárias, estabeleciam seus domicílios fiscais em municípios com alíquotas ínfimas, mas sem possuir no local qualquer estrutura material ou de pessoal capaz de efetivamente prestar os serviços. Eram os chamados "estabelecimentos de fachada". Em resposta, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi provocado a se manifestar e consolidou o entendimento de que o estabelecimento prestador não é um mero endereço formal, mas o local que configura uma unidade econômica ou profissional. Ou seja, é o local onde o contribuinte efetivamente mantém uma estrutura com pessoal, equipamentos, tecnologia e know-how necessários para a execução da atividade. Essa construção jurisprudencial, embora acertada, demandou anos de litígios para simplesmente dar efetividade à regra geral, evidenciando a profunda instabilidade do modelo.

II - O CRITÉRIO ESPACIAL NO IBS: A ADOÇÃO DO PRINCÍPIO DO DESTINO PLENO
A Lei Complementar nº 214/2025 rompe com o modelo anterior e adota, de forma clara e inequívoca, o princípio do destino como regra universal para o IBS. O objetivo é simples: o imposto pertence ao local onde o bem ou serviço é efetivamente consumido, neutralizando a guerra fiscal.
O Art. 11 da nova lei, detalha como o "destino" é determinado para cada tipo de operação:

 

1. Operações com Bens Imóveis
Regra: O imposto é devido no local onde o imóvel estiver situado (Art. 11, II).
Detalhe: Se o imóvel estiver em mais de um Município, o local da operação será o Município onde se encontra a maior parte da sua área (§ 2º).
Aplica-se a: Venda, locação, arrendamento, cessão de direitos reais, serviços sobre o imóvel (construção, administração, etc.).

 

2. Operações com Bens Móveis Materiais
Regra: O imposto é devido no local da entrega ou disponibilização do bem ao destinatário (Art. 11, I).
Detalhes Importantes (§ 1º):
Vendas não presenciais (E-commerce): O local da operação é o destino final indicado pelo adquirente, seja ao fornecedor (se este for responsável pelo frete) ou à transportadora (se o adquirente for responsável pelo frete).
Veículos (terrestres, aquáticos ou aéreos): O local da operação é o domicílio principal do destinatário.
Leilões e Bens Apreendidos: O local da operação é onde o bem se encontra no momento da aquisição.

 

3. Operações com Serviços
A lei estabelece regras específicas para diferentes tipos de serviços, sempre buscando o local do consumo/fruição:
Serviços prestados fisicamente sobre Pessoas: O local da prestação do serviço (ex: um corte de cabelo, uma consulta médica presencial) (Art. 11, III).
Serviços prestados fisicamente sobre Bens Móveis: O local da prestação do serviço (ex: o conserto de um equipamento) (Art. 11, V).
Serviços de Transporte de Passageiros: O local de início do transporte (Art. 11, VI).
Serviços de Transporte de Carga: O local da entrega do bem ao destinatário final (Art. 11, VII).
Serviços de Comunicação (Telefonia Fixa, etc.): O local de instalação do terminal (Art. 11, IX).
Eventos (Feiras, Congressos, Shows): O local do evento (Art. 11, IV).

 

4. A Regra Geral: Demais Serviços e Bens Imateriais
Regra: Para todos os demais serviços (consultorias, serviços digitais, etc.) e bens imateriais (softwares, direitos autorais, etc.) não listados acima, o imposto é devido no local do domicílio principal do adquirente (em operações onerosas) ou do destinatário (em operações não onerosas) (Art. 11, X).
Ponto-Chave: A Definição de "Domicílio Principal" (§ 3º)

Para evitar ambiguidades, a lei ainda detalha, em seu Art. 11, § 3º, os critérios para identificar o domicílio do adquirente, combinando informações do cadastro único, endereço declarado, dados do meio de pagamento e até mesmo o endereço de IP, conferindo maior segurança à determinação do sujeito ativo da obrigação tributária.

 

III - SIMILITUDES E DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS
A única similitude real é que ambos os sistemas reconhecem a necessidade de tributar certos serviços no destino. Contudo, as diferenças na aplicação desse reconhecimento são abissais.

 

DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS (CRITÉRIO ESPACIAL)
Regra Geral vs. Exceção:
ISS: A tributação na origem é a regra geral, ainda que na prática as exceções sejam vastas e de grande relevância econômica.
IBS: A tributação no destino é a regra universal e absoluta. Não há exceções que retornem a tributação à origem.
Complexidade vs. Simplificação:
ISS: A existência de uma regra geral e 22 exceções cria um sistema de alta complexidade, que exige análise caso a caso e gera litígios sobre o enquadramento.
IBS: O sistema é drasticamente simplificado. A lógica é única (destino), e as regras do art. 11 da LC 214/20205, servem apenas para objetivar a identificação desse destino conforme a natureza da operação.
Guerra Fiscal vs. Neutralidade:
ISS: O modelo de origem incentiva a competição predatória entre municípios para atrair as sedes de empresas, resultando em perda de arrecadação e concentração de receita.
IBS: O modelo de destino neutraliza a guerra fiscal, pois a alíquota e a arrecadação estão vinculadas ao local do consumo e não à sede do prestador. A receita é distribuída de forma mais justa, beneficiando os municípios onde se encontram os consumidores.

 

III - CONCLUSÃO
A redefinição do critério espacial é, ao lado da não cumulatividade plena, um dos pilares da Reforma Tributária. A migração de um sistema híbrido, complexo e litigioso para um modelo puro, de tributação no destino, representa um avanço fundamental para a racionalidade do sistema tributário brasileiro.

Ao extinguir a principal causa da guerra fiscal entre os municípios, o IBS promove um ambiente de negócios mais isonômico e previsível. Para os contribuintes, a mudança traz maior segurança jurídica, eliminando as dúvidas sobre qual município é o credor do imposto. Para a administração pública, representa a promessa de uma distribuição de receita mais equitativa e alinhada à realidade econômica do consumo no território nacional.

 

 
*José Antônio Patrocínio é Advogado, Consultor Tributário da Thomson Reuters, Professor de ISSQN em Cursos de Pós-graduação e Autor do Livro: "ISS - Teoria, Prática e Jurisprudência - 7ª Edição".