Esqueceram de Alguém na Reforma Tributária - Claudia Marchetti da Silva*
Essa é, sem dúvida nenhuma, a reforma dos tributos sobre o consumo, a reforma da mudança de mentalidade fiscal, a reforma que redesenha estratégias empresariais e exige uma revolução tecnológica dentro das organizações. É a reforma que promete simplificar, modernizar e reorganizar completamente a lógica do sistema. Mas, assim como no clássico Esqueceram de Mim, a família inteira embarcou rumo ao novo modelo e o contencioso tributário ficou sozinho em casa, ignorado justamente quando mais precisava ser lembrado, em paradoxal contraste com o fato de que esta também é a reforma que se propõe a reduzir a litigiosidade.
O Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro¹, publicado em 2022, revelou que a litigiosidade é fruto de uma soma de fatores estruturais que se retroalimentam. De um lado, a complexidade e a diversidade da legislação tributária, agravadas pela falta de orientação precisa, interpretações oscilantes e deficiências na aplicação das normas pela própria administração, produzem um ambiente em que o contribuinte tem dificuldades de saber, com segurança, qual caminho seguir. De outro, a arquitetura institucional do processo tributário brasileiro, espalhada entre múltiplas esferas, instâncias superpostas e pouca integração entre o administrativo e o judicial, cria fluxos que se arrastam e decisões que nem sempre dialogam entre si. O resultado é um contencioso volumoso, lento e caro, que distorce incentivos, compromete a segurança jurídica e afeta diretamente o ambiente de negócios.
Alguns números ajudam a dimensionar o problema. Embora o estoque de processos tributários tenha caído nos tribunais superiores (49,1% no STF, entre 2017 e 2020, e 37,3% no STJ, entre 2016 e 2021), o volume total permanece expressivo e essa redução não significa, necessariamente, menor litigiosidade na base do sistema. O diagnóstico mostra, por exemplo, que 93% das apelações mantêm a decisão de primeira instância, com apenas 7% de reversões, um indicativo de que muito do que chega às cortes superiores talvez pudesse ter sido filtrado antes. Também revela que, em 2021, apenas 10 em cada 100 execuções fiscais foram efetivamente baixadas, contribuindo para uma taxa de congestionamento de 74,2% no Judiciário. Por fim, impostos sobre o consumo, como o ICMS e o PIS/Cofins, concentram, respectivamente, 16,4% e 11% de todos os processos.
Se a Reforma promete reduzir disputas sobre créditos, base de cálculo, alíquota e competência, ela também pode gerar um efeito colateral relevante: o aumento potencial da litigância. No sistema que está sendo construído, um mesmo fato gerador poderá produzir créditos e débitos em três esferas ? União, Estados e Municípios ? abrindo espaço para controvérsias paralelas sobre a mesma operação. Se cada ente mantiver seus próprios lançamentos, execuções e contestações autônomas, corremos o risco de criar litígios múltiplos sobre um único evento econômico.
Até o momento, não há propostas legislativas consolidadas para adaptar o contencioso judicial à nova realidade do IBS e da CBS. As ideias em circulação são pontuais e ainda embrionárias como tribunais mistos, com juízes federais e estaduais julgando conjuntamente controvérsias dos novos tributos; ações diretas específicas para uniformizar a interpretação; e colegiados nacionais capazes de harmonizar decisões em âmbito federativo. Nada disso, porém, avançou de forma concreta.
Está claro que a Reforma Tributária representa um avanço institucional e econômico importante, mas, como no filme, na preparação para a viagem não basta arrumar as malas e organizar a casa se alguém essencial continua esquecido no caminho. A efetividade do novo modelo dependerá diretamente da capacidade de integrar governança federativa, coordenação digital e segurança jurídica na transição e isso inclui, necessariamente, o contencioso. Consolidar um contencioso administrativo e judicial estável, com clareza interpretativa sobre temas sensíveis, é o passo decisivo para que esta seja, de fato, a reforma da modernização e da segurança jurídica.
Se eu tivesse que traçar um diagnóstico até aqui, diria que a Reforma entrega parte de suas promessas: oferece simplicidade formal, amplia a transparência e promove um redesenho federativo mais coerente. Ainda assim, carrega riscos de complexidade operacional, aumento de litígios e desequilíbrios regionais temporários.
Mas vamos com calma. O Brasil nunca passou por uma alteração tributária e fiscal dessa dimensão. Trata-se, portanto, de uma primeira experiência e, como toda experiência inaugural, avançaremos aos poucos, percebendo lacunas, suprindo-as e corrigindo os erros que surgirem pelo caminho. É justamente por isso que o debate público se torna indispensável. Os diferentes olhares sobre as inúmeras nuances do tema ajudam a identificar pontos cegos, propor melhorias e garantir que a reforma evolua com a maturidade que o sistema tributário brasileiro exige.
*Claudia Marchetti da Silva advogada, consultora tributária e pesquisadora. Doutoranda em Direito Fiscal pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Tributário. Autora de livros e artigos de Direito Tributário e coordenadora da obra "Mulheres quais são seus direitos" publicado pela editora Revista dos Tribunais".