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IOF em cena: o coadjuvante que roubou os holofotes - Claudia Marchetti da Silva*

Nas últimas semanas, o brilho da Reforma Tributária - a protagonista do debate fiscal - tem sido ofuscado por um coadjuvante: um imposto discreto, quase sempre nos bastidores. O IOF resolveu subir ao palco.

Instituído pela Lei nº 5.143/1966 e disciplinado pelo artigo 63 do Código Tributário Nacional, o IOF incide no momento da efetivação (crédito), entrega (câmbio), emissão ou recebimento (seguro) e emissão, transmissão ou resgate (títulos e valores mobiliários). Sua natureza jurídica é, oficialmente, a de imposto regulatório, ou seja, concebido para permitir intervenções do Estado em determinados setores da economia. Atua como instrumento de regulação econômica e, por essa razão, o artigo 153, §1º,da Constituição Federal autoriza o Poder Executivo a ajustar suas alíquotas por decreto, uma exceção expressa ao princípio da legalidade.

Contudo, na prática, o IOF - assim como outros impostos de função regulatória, como o Imposto de Importação (II), o Imposto de Exportação (IE) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) - pode exercer uma função arrecadatória relevante. Isso não representa, necessariamente, uma contradição: a natureza regulatória desses impostos não impede que também cumpram um papel fiscal, sobretudo em contextos de necessidade de ajuste nas contas públicas.

Um tributo, criado originalmente com finalidade arrecadatória, pode atuar como instrumento de intervenção econômica ou indução de comportamentos de forma não intencional, influenciando decisões de empresas e indivíduos de maneira incidental, seja pela alteração dos custos relativos, seja pela resposta natural à carga tributária[1]. Por outro lado, há casos em que a norma tributária é deliberadamente estruturada como instrumento de intervenção indireta do Estado, com o objetivode orientar a conduta dos a gentes econômicos em conformidade com o interesse público, exercendo, ainda que secundariamente, uma função arrecadatória relevante. Em resumo, a doutrina tributária contemporânea compreende que os tributos possuem uma natureza mista, abraçando simultaneamente, em maior ou menor medida, as funções fiscais e extrafiscais[2]. Entretanto, o que poderia parecer algo compreensível transformou-se em disputa após a edição dos Decretos nº 12.466/2025, 12.467/2025 e 12.499/2025, publicados entre 22 de maio e 11 de junho, que majoraram as alíquotas de diversas hipóteses de incidência do IOF.

Depois do Decreto Presidencial e o Decreto Legislativo nº 176/2025, aprovado com urgência para sustar os efeitos dos atos do Executivo, muita água rolou. Três ações distintas foram impetradas no STF: uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), apresentada pelo PL,que alegou desvio de finalidade nos decretos presidenciais por priorizar em arrecadação ao invés da função regulatória; uma ADI proposta pelo PSOL, que questionou a atuação do Congresso por invadir competências do Executivo; e uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), movida pelo próprio governo, buscando confirmar a legalidade do aumento do IOF. E como isso acabou (ou não)? Com o Ministro Alexandre de Moraes decidindo que, na prática, todos estavam errados - e que Executivo e Legislativo deveriam, em outras palavras, sentar e conversar. A audiência de conciliação entre os Poderes foi marcada para 15 dejulho.

Na minha leitura, o STF adotou uma postura mais pacificadora do que propriamente jurídica, ou, ao menos, com limitações jurídicas. A Corte reconheceu que as alterações nas alíquotas do IOF tiveram como objetivo principal o aumento de arrecadação, distanciando-se de sua função originalmente regulatória e extrafiscal, prevista na Constituição. Também apontou a possibilidade de desvio de finalidade no uso dos decretos presidenciais, que, embora formalmente válidos, podem ter ultrapassado os limites da discricionariedade conferida ao Executivo. Ao editar normas com foco arrecadatório, o Executivo pode ter afrontado o princípio da legalidade tributária.

O mais interessante de tudo isso é que o episódio não foi reduzido a uma disputa entre os Poderes Executivo e Legislativo, mas reacendeu uma discussão mais profunda: a justiça fiscal no Brasil. Em um sistema que convive com desigualdades estruturais, é legítimo questionar não apenas quem tem competência para tributar e a forma como se exerce essa competência, mas quem efetivamente arca com os ônus da tributação e se o modelo atual do IOF está à altura dos princípios de equidade e função social que devem orientar a política fiscal.

Um dos aspectos centrais desse debate se refere à maneira como os encargos tributários são distribuídos entre os cidadãos e empresas ou, mais precisamente, entre as diferentes categorias de contribuintes. Dada uma determinada carga fiscal, importa avaliar como ela é partilhada entre todos, especialmente sob a ótica da sua incidência sobre osque possuem maior ou menor capacidade contributiva. O caso do IOF acendeu a discussão certa e talvez isso já seja um avanço.


[1] Para Luís Eduardo Schoueri, a função regulatória da tributação, corresponde à função indutora: "(...) qualquer que seja o tributo, haverá, em maior ou menor grau, a influência sobre o comportamento dos contribuintes, que serão desestimulados a práticas que levem à tributação." (SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 43).

[2] Ao destacar a dualidade inerente aos tributos, que, ao mesmo tempo em que visam arrecadar, também funcionam como instrumentos de intervenção social eeconômica, Alfredo Augusto Becker: "Na construção de cada tributo não mais será ignorado o finalismo extrafiscal, nem será esquecido o fiscal. Ambos coexistirão, agora de um modo consciente e desejado; apenas haverá maior ou menor prevalência deste ou daquele finalismo." (BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007. p. 623-624).

 
*Claudia Marchetti da Silva advogada, consultora tributária e pesquisadora. Doutoranda em Direito Fiscal pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Tributário. Autora de livros e artigos de Direito Tributário e coordenadora da obra "Mulheres quais são seus direitos" publicado pela editora Revista dos Tribunais".