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Justiça Tributária: Você tem fome de quê? - Claudia Marchetti da Silva*

O conceito de justiça tributária pode ter diversos significados, o mais comum se limita a proceder uma avaliação quantitativa do modo como são distribuídos os encargos tributários entre as várias categorias de contribuintes, particularmente na perspectiva da sua incidência entre os contribuintes com maior e menor renda. Neste sentido, embora a justiça tributária não esteja disciplinada expressamente na Constituição Federal, trata-se de um dever garantido (valor implícito) que se concretiza levando-se em conta os princípios da capacidade contributiva e da igualdade.

Mas é possível construir o conceito de justiça tributária a partir de um princípio ainda mais amplo e complexo: o princípio da dignidade da pessoa humana. Um dos fundamentos da República Federativa do Brasil previsto no artigo 1º, inciso III da CF.

De uma maneira muito didática, viver dignamente é o direito de se levar uma "vida boa", em outras palavras, uma vida em que nenhum dos direitos fundamentais e sociais nos sejam negados e que desta forma possamos exercer todas as nossas potencialidades e fazer escolhas. A dignidade da pessoa humana é, justamente, o elo de acesso aos direitos fundamentais e da efetividade dos direitos sociais.

Os direitos sociais visam resguardar direitos mínimos de qualidade de vida dos cidadãos. O art. 6º da CF elenca quais são os direitos sociais: educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. As políticas fiscais não podem ser dissociadas desta concepção constitucional da justiça tributária.

Com a promulgação da Reforma Tributária, foi aprovado a criação de um novo imposto, de caráter eminentemente extrafiscal, cuja competência será exercida pela União. O imposto seletivo (IS) tem a função de desestimular a comercialização de produtos e serviços prejudiciais à saúde e à sustentabilidade ambiental. As mercadorias, bens e serviços serão definidos por lei complementar e o alimentos ultraprocessados estão na mira.

No Guia Alimentar para a População Brasileira¹ os alimentos ultraprocessados são formulações industriais prontas para consumo, feitas com ingredientes com nomes pouco familiares e não usados em casa (carboximetilcelulose, açúcar invertido, maltodextrina, frutose, xarope de milho, aromatizantes, emulsificantes, espessantes, adoçantes, entre outros). Exemplos: salgadinhos de pacote, refrigerantes e bebidas adoçadas, macarrão instantâneo, biscoitos recheados e chocolate.

O consumo em exagero leva ao aparecimento de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes , hipertensão, obesidade, doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer². Ainda assim, as distorções da estrutura tributária permitem que alimentos ultraprocessados sejam beneficiados por isenções e reduções de base de cálculo.

Recentemente, o Decreto nº 11.936/24 reformulou a composição da cesta básica de alimentos no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e da Política Nacional de Abastecimento Alimentar. A portaria MDS nº 966/24 define a relação de alimentos de acordo com os grupos alimentares. O texto determina a inclusão de alimentos in natura ou minimamente processados na cesta.

Reconhece-se o avanço, entretanto a inclusão dos alimentos ultraprocessados no campo de incidência do imposto seletivo reforçará o direito humano à alimentação digna e à saúde. A expectativa é que tributação, acompanhada de campanhas de conscientização e da regulamentação do marketing nutricional (publicidade na TV e meios digitais) impacte no aumento dos preços dos produtos desestimulando o consumo, consequentemente contribua com a diminuição de despesas do Sistema Único de Saúde e promova a justiça tributária.


_________________________
¹O guia é um instrumento criado para apoiar e incentivar práticas alimentares saudáveis no âmbito individual e coletivo,  produzido pelo Ministério da Saúde. Disponível em
https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saps/promocao-da-saude/guias-alimentares/publicacoes.
²A contribuição dos alimentos ultraprocessados para a ingestão total de energia da dieta entre os estratos de sexo e idade dos adultos brasileiros variou de 13% a 21% da ingestão total de energia. Um total de 541.160 adultos com idade entre 30 e 69 anos morreu em 2019. O consumo de alimentos ultraprocessados foi responsável por aproximadamente 57.000 mortes prematuras A redução da contribuição dos alimentos ultraprocessados para a ingestão total de energia em 10% a 50% poderia potencialmente evitar 5.900 mortes. Premature Deaths Attributable to the Consumption of Ultraprocessed Foods in Brazil. 2023. Disponível em
https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saps/promocao-da-saude/guias-alimentares/publicacoes.


 
Claudia Marchetti da Silva advogada, consultora tributária e pesquisadora. Doutoranda em Direito Fiscal pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Tributário. Autora de livros e artigos de Direito Tributário e coordenadora da obra "Mulheres quais são seus direitos" publicado pela editora Revista dos Tribunais.