Da necessária conciliação (no âmbito do processo administrativo tributário paulista) da eficiência fazendária com o respeito ao devido processo legal. - Marcelo Fróes Del Fiorentino*
1. Os Auditores Fiscais da Receita Estadual (servidores públicos vinculados à Secretaria da Fazenda e Planejamento do Governo do Estado de São Paulo) - aqui compreendidos como os "operadores jurídicos" por excelência no bojo do fundamental procedimento administrativo fiscalizatório a culminar, muitas vezes, na lavratura de Autos de Infração e Imposição de Multa - possuem o dever funcional de conciliar/garantir dois princípios jurídicos basilares, quais sejam: i. respeito/obediência ao devido processo legal em sentido amplo no âmbito do processo administrativo tributário tal como estatuído nos Incisos LIV e LV do art. 5º da CF/88 ("(...) Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LIV - ninguém será privado (...) de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo (...) administrativo, (...) são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (...)"); e ii. efetiva implementação/cumprimento do princípio da eficiência administrativa aplicável à administração fazendária - bem como seus consectários identificados pelo binômio prioridade e preponderância - tal como prescrito no art. 37 da CF/88 ("(...) Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes (...) dos Estados (...) obedecerá aos princípios de (...) eficiência e, também, ao seguinte: (...) XVIII - a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da lei (...) XXII - as administrações tributárias (...) dos Estados (...) atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio (...)").
2. A necessária conciliação principiológica acima mencionada não se verifica por vezes, entretanto, quando do manejo/utilização - pelos precitados Auditores Fiscais da Receita Estadual - da sistemática de comunicação eletrônica entre o fisco paulista e os sujeitos passivos denominada "Domicílio Eletrônico do Contribuinte/DEC"; "comunicação eletrônica" esta originalmente instituída, dentre outros, pelos artigos 1º a 4º da Lei nº. 13.918/09.
2.1. Uma primeira ilegalidade em sentido amplo correlacionada ao inadequado manejo do DEC surge a partir da constatação do denominado "credenciamento de ofício" tal como instituído pelos artigos 2º e 3º da Portaria CAT 140/10 ("(...) Artigo 2º. O credenciamento deverá ser efetuado por meio da rede mundial de computadores, mediante acesso ao endereço eletrônico (...) na funcionalidade relativa ao Domicílio Eletrônico do Contribuinte - DEC (...) § 2º - O credenciamento: (...) 3 - poderá ser: (...) b) de ofício, nos termos do artigo 3º (...) Artigo 3º - A Secretaria da Fazenda e Planejamento credenciará de ofício a pessoa jurídica para recebimento de comunicação eletrônica por meio do DEC (...)".
O credenciamento de ofício, ontologicamente considerado, pode ser considerado juridicamente válido desde que a pessoa jurídica previamente credenciada pelo fisco seja formalmente notificada do ato jurídico do credenciamento de ofício propriamente dito por uma das formas prescritas no já aludido art. 3º da Portaria CAT 140/10, in verbis: "(...) Artigo 3º. A Secretaria da Fazenda e Planejamento credenciará de ofício a pessoa jurídica para recebimento de comunicação eletrônica por meio do DEC, sendo que a notificação desse ato de ofício dar-se-á, alternativamente, com a publicação no Diário Oficial do Estado - DOE, encaminhamento via postal com aviso de recebimento ou, ainda, entrega pessoal pelo Auditor Fiscal da Receita Estadual. § 1º. O credenciamento de ofício será efetuado: 1 - na hipótese de a pessoa jurídica não se credenciar no prazo previsto no cronograma de obrigatoriedade de credenciamento referido na alínea "c" do item 3 do § 2º do artigo 2º; 2 - a partir da data da concessão da inscrição estadual, a todos os sujeitos passivos de tributos estaduais inscritos no Cadastro de Contribuintes do ICMS a partir de 1º de janeiro de 2024, desde que se trate da primeira inscrição do CNPJ base. § 2º. A publicação do Diário Oficial do Estado - DOE a que se refere o "caput" conterá a indicação do número do CNPJ base da pessoa jurídica credenciada de ofício. § 3º Na hipótese do item 2 do § 1º, o sujeito passivo será avisado por meio de mensagem na tela relativa à abertura da inscrição estadual (...)".
2.1.1. Já a combinação da constatação da realização do credenciamento de oficio de uma determinada pessoa jurídica pelo fisco paulista sem a necessária correspondente notificação formal do ato jurídico do credenciamento de ofício propriamente dito (por implicar em evidente afronta ao devido processo legal em sentido amplo no âmbito do processo administrativo tributário) vem sendo refutada pelas turmas de julgamento/Câmaras de Direito Público do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme se denota do seguinte r. decisório a seguir parcialmente reproduzido:
"(...) ACÓRDÃO (...) Apelação nº. 1502258-08.2016.8.26.0014 (...) em que é apelante ESTADO DE SÃO PAULO (...) ACORDAM, em 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Negaram provimento ao recurso. V.U." (...) O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores MARIA LAURA TAVARES (Presidente), FERMINO MAGNANI FILHO E FRANCISCO BIANCO. São Paulo, 26 de fevereiro de 2018. MARIA LAURA TAVARES. RELATORA (...) VOTO Nº. 23.198 (...) APELAÇÃO CÍVEL - EXECUÇÃO FISCAL - EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE - Alegação de irregularidade da notificação de auto de infração e imposição de multa (...) Contribuinte credenciado de ofício no "DEC" (Domicílio Eletrônico do Contribuinte) - Ausência de provas de que o contribuinte foi notificado de seu credenciamento de ofício - Inequívoca violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa na esfera administrativa (...) Recurso fazendário improvido (...) Pelo que se depreende dos autos, a excipiente foi credenciada de ofício no sistema DEC, sem qualquer prévia notificação pessoal e inequívoca a esse respeito (...) Todavia, não se discute no presente caso a validade, em si, das notificações por meio do DEC, mas a própria forma de inscrição do contribuinte nesse sistema (...) Nesse ponto, tanto o Decreto 56.104/2020 (art. 3º) quanto a Portaria CAT 140/2010 (art. 2º, § 2º, item 3, "b"), ao regulamentarem a Lei 13.918/09, previram a possibilidade de credenciamento de ofício do contribuinte na funcionalidade relativa ao Domicílio Eletrônico do Contribuinte - DEC. Todavia, independentemente de se entender como legal ou não essa forma de credenciamento de ofício, o fato é que a própria Portaria CAT 140/2010 previu, em seu artigo 3º, a obrigação de se dar ciência inequívoca ao contribuinte acerca da sua inscrição de ofício no sistema DEC, por meio de (i) publicação no Diário Oficial do Estado, (ii) encaminhamento via postal com aviso de recebimento, ou, ainda, (iii) entrega pessoal pelo Agente Fiscal de Rendas (...) No caso dos autos, não há qualquer prova produzida pela Fazenda Estadual no sentido de que o excipiente foi efetivamente notificado de seu cadastramento de ofício por meio de publicação no Diário Oficial, correspondência com aviso de recebimento ou entrega pessoal pelo Agente Fiscal de Rendas (...) Ante a clara violação aos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa em âmbito administrativo, forçoso reconhecer que o credenciamento de ofício do contribuinte no sistema DEC, sem seu conhecimento inequívoco, causou-lhe prejuízo e viciou o processo administrativo em comento, o qual deve ser anulado desde a fase em que se verificou o vício, assim como a própria CDA (...)".
2.2. Uma segunda e última ilegalidade em sentido amplo correlacionada ao inadequado manejo do DEC surge a partir da verificação da modificação da forma de comunicação fazendária ocorrida no transcurso de um mesmo procedimento administrativo fiscalizatório. Tal modificação, de per si, não implica em maiores questionamentos jurídicos; estando taxativamente amparada, inclusive, pelo Parágrafo único do art. 4º da Portaria CAT 140/10, in verbis: "(...) Artigo 4º (...) Parágrafo único. A Secretaria da Fazenda e Planejamento poderá, no interesse da Administração Pública, utilizar outras formas de comunicação previstas na legislação, ainda que a pessoa jurídica esteja credenciada a receber comunicação por meio do DEC (...)".
Não se afigura ilegal (em uma situação hipotética envolvendo uma pessoa jurídica devidamente credenciada no DEC alvo de um procedimento administrativo fiscalizatório formalmente embasado em uma Ordem de Serviço Fiscal/OSF válida) a utilização - do início ao fim de tal procedimento - da modalidade de comunicação/notificação via postal com aviso de recebimento ou via entrega pessoal pelo Auditor Fiscal da Receita Estadual.
Também não se afigura ilegal (em uma situação hipotética envolvendo uma pessoa jurídica devidamente credenciada no DEC alvo de um procedimento administrativo fiscalizatório formalmente embasado em uma Ordem de Serviço Fiscal/OSF válida) a utilização inicial de uma específica modalidade de comunicação/notificação com a posterior modificação em tal modalidade de comunicação/notificação, conquanto que a pessoa jurídica fiscalizada seja inequívoca e formalmente informada pelo fisco (de maneira tempestiva) a respeito da implementação de tal modificação na modalidade de comunicação/notificação.
2.2.1. Conclusão diametralmente oposta quanto à legalidade (em uma situação hipotética envolvendo uma pessoa jurídica devidamente credenciada no DEC alvo de um procedimento administrativo fiscalizatório formalmente embasado em um Ordem de Serviço Fiscal/OSF válida) decorre da utilização inicial de uma específica modalidade de comunicação/notificação diversa da comunicação eletrônica através do DEC - por exemplo, comunicação pessoal ou via postal - com a posterior utilização exclusiva da comunicação eletrônica via DEC por ocasião da "notificação" da lavratura de um Auto de Infração e Imposição de Multa, sem que a pessoa jurídica fiscalizada seja inequívoca e formalmente informada pelo fisco (de maneira tempestiva) a respeito da implementação de tal modificação na modalidade de comunicação/notificação.
A ocorrência de uma mudança efetivada unilateralmente pelo fisco, sem qualquer aviso prévio/anterior endereçado ao sujeito passivo, na modalidade de comunicação entre as partes por ocasião da "notificação" da lavratura de um Auto de Infração e Imposição de Multa (por não se amoldar ao tantas vezes citado princípio do devido processo legal em sentido amplo) também vem sendo refutada pelas turmas de julgamento/Câmaras de Direito Público do colendo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme se denota do seguinte r. decisório a seguir parcialmente transcrito:
"(...) ACÓRDÃO. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº. 1000951-89.2019.8.26.0590 (...) em que (...) é apelado ESTADO DE SÃO PAULO. ACORDAM, em 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Deram provimento ao recurso (...) V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores COIMBRA SCHMIDT (Presidente), EDUARDO GOUVÊA E LUIZ SÉRGIO FERNANDES DE SOUZA. São Paulo, 1º de março de 2021. COIMBRA SCHMIDT. RELATOR (...) Voto nº. 41.951 (...) TRIBUTÁRIO. ICMS. AIIM. Notificações dos procedimentos administrativos de fiscalização inicialmente encaminhadas por via postal. Notificações posteriores realizadas pelo Domicílio Eletrônico do Contribuinte. Mudança de meio de comunicação efetuada unilateralmente e sem aviso prévio. Inadmissibilidade, pois a resultante situação de insegurança jurídica causou embaraço que fere o princípio da razoabilidade e da lealdade das relações entre as partes, dificultando o exercício do direito ao contraditório administrativo. Invalidação do AIIM. Recurso provido (...) Conquanto sustente o fisco ter notificado a contribuinte pelo Domicílio Eletrônico do Contribuinte, nos termos do art. 4º da Lei 13.918, com o que estariam dispensadas publicações no Diário Oficial do Estado ou remessa postal, notificação e renotificação previamente encaminhadas no bojo da OSF nº. 02.0.01411/13-3, o foram por via postal (...) O cenário que se apresenta, pois, revela desrespeito ao elemento primordial das relações entre a Administração e o administrado, na medida em que, diante da forma de comunicação inicialmente eleita, a ulterior opção pelo Domicílio Eletrônico de Contribuinte deveria ser objeto de prévio aviso, pois o meio inicialmente utilizado gerou justa e válida expectativa de que da mesma forma fossem emitidas as notificações ulteriores. Ainda que fosse recomendável ao contribuinte verificar periodicamente a existência de notificações em seu DEC, fato é que faltou a Fazenda para com a necessária lealdade, violando o princípio da boa-fé objetiva, ao alterar unilateralmente e a seu talante a forma de comunicação até então utilizada. Disso resultou a perda de oportunidade para apresentação de defesa (...) a traduzir inadmissível afronta aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Apesar de a Administração ter a faculdade de escolher o modo de comunicação que mais lhe aprouver, uma vez eleita, não lhe é lícito, unilateral e arbitrariamente realizar a comunicação por outro meio sem a prévia notícia, enfatizo. A ausência de sistematização ou padronização na comunicação com o fiscalizado, no caso, depõe contra a Administração, arrendando-lhe a presunção relativa de validade, porquanto não cumpriu, em outras palavras, com o devido processo legal administrativo (...) Tem-se, portanto, que a falta de notificação válida implica na ausência do aperfeiçoamento da constituição do crédito tributário, caracterizando vício formal que acarreta sua nulidade (...)".
Marcelo Fróes Del Fiorentino é Mestre e Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Ex-juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (TIT/SP). Advogado em São Paulo.