A omissão do legislativo federal e a perda de arrecadação dos estados - Claudia Marchetti da Silva*
Em 2021 o ITCMD tem disputado o protagonismo no Supremo Tribunal Federal em razão do julgamento recente, ocorrido no início de março, de uma discussão um tanto antiga que, segundo o Ministro Roberto Barroso, cria uma situação de "clara tensão entre a Justiça tributária e a reserva de lei, que demanda a atuação do legislador1." Trata-se da incidência do ITCMD sobre doações e heranças provenientes do exterior.
Com origem na 1 ª Vara da Fazenda Pública de Araçatuba, o Mandado de Segurança Repressivo chegou à suprema corte através Recurso Extraordinário n. 851.108, interposto pela Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. O pedido era, essencialmente, o reconhecimento da constitucionalidade do art. 4º lei paulista 10.705/20002 e do decreto 46.655/2002.
De início, o art. 155, I, da Constituição Federal, define a competência tributária dos estados e do Distrito Federal de instituir impostos sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos (ITCMD), utilizando duas regras fixadas no § 1º, I, II, do mesmo dispositivo: (i) relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal (ii) relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal.
Em seguida, o inciso III prevê - na hipótese do doador ser domiciliado ou residente no exterior ou, se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior - o condicionamento do exercício da competência à existência de lei complementar. Entretanto, mais de trinta anos da promulgação da Constituição de 1988, a lei não foi editada.
O argumento utilizado no recurso, de que o estado de São Paulo estaria exercendo sua competência plena ao cobrar o ITCMD sobre doações e heranças provenientes do exterior, com fulcro no art. 24, § 3º3, da Constituição e no art. 34, § 3º, do ADCT4, não resistiu e a tese (tema 825 da repercussão geral) foi fixada: "É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional."
Em que pese o consenso em relação a não incidência do ITCMD, a modulação dos efeitos desta decisão com eficácia ex nunc, a contar da publicação do acórdão, ainda é tema controverso entre os Ministros. Por esta razão, no início do mês de outubro, o Ministro Alexandre de Moraes, suspendeu o julgamento de quatro ADI5 que buscam a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos das leis ordinárias dos estados da Bahia, Amazonas, Minas Gerais e Rio Grande de Sul que instituem o ITCMD sobre doações e heranças provenientes do exterior.
Ultrapassada esta questão, tendo em conta que os impostos sobre herança desempenham um papel importante nas receitas dos governos e são considerados uma forma justa e eficaz de tributar as transferências de riqueza, é fundamental que o poder legislativo edite lei complementar atentando-se aos possíveis riscos de conflito de competência entre Unidades Federativas.
1 Trecho do voto do Ministro Roberto Barroso. 2 Artigo 4º - O imposto é devido nas hipóteses abaixo especificadas, sempre que o doador residir ou tiver domicílio no exterior, e, no caso de morte, se o "de cujus" possuía bens, era residente ou teve seu inventário processado fora do país: I - sendo corpóreo o bem transmitido: a) quando se encontrar no território do Estado; b) quando se encontrar no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado; II - sendo incorpóreo o bem transmitido: a) quando o ato de sua transferência ou liquidação ocorrer neste Estado; b) quando o ato referido na alínea anterior ocorrer no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado. 3 Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; § 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. 4 Art. 34. O sistema tributário nacional entrará em vigor a partir do primeiro dia do quinto mês seguinte ao da promulgação da Constituição, mantido, até então, o da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969, e pelas posteriores. (?) § 3º Promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto. 5 Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 6825, 6835, 6836 e 6839.
*Claudia Marchetti da Silva - advogada, consultora tributária e pesquisadora. Doutoranda em Direito Fiscal pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Tributário. Autora de livros e artigos de Direito Tributário e coordenadora da obra "Mulheres quais são seus direitos" publicado pela editora Revista dos Tribunais.