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STF determina que a imunidade tributária prevista no artigo 156, §2º, da Constituição Federal não abrange o valor dos imóveis que exceder o limite do capital social a ser integralizado pela pessoa jurídica - Bruno Panace Olivieri*

Em 15.10.2020, transitou em julgado o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ("STF"), nos autos do Recurso Extraordinário nº 796.376/SC ("RE 796.376"), que trata da incidência da imunidade tributária do Imposto Sobre a Transmissão de Bens Imóveis ("ITBI") sobre os imóveis incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica para realização de capital, nas hipóteses em que o valor desses bens é superior às quotas integralizadas (Tema 796)[1].

Por maioria de votos (7x4), a Corte Suprema fixou a seguinte tese de repercussão geral: "a imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado".

Ao contrário do que sugere a leitura superficial/acrítica da tese supra, a decisão do STF não pode ser aplicada de forma irrestrita para legitimar a cobrança de ITBI em todo e qualquer caso, no qual seja apurada diferença entre o valor do imóvel incorporado ao patrimônio da pessoa jurídica e o capital social integralizado - como, aliás, já estava sendo feito por alguns municípios antes mesmo da prolação da decisão final no RE 796.376. Explica-se.

O art. 156, §2º, I, da Constituição Federal prevê a imunidade tributária de ITBI nas operações societárias que envolvam a realização de capital social por meio de transferência de bens móveis ou direitos reais específicas:

"Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (?)
II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; (...)
§ 2º O imposto previsto no inciso II:
I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil; (g.n.)"

Essa norma, vale destacar, não foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio pela Constituição Federal de 1988. Na realidade, foi instituída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1º.12.1965 ("EC 18/65")[2], tendo sido, posteriormente, reproduzida (quase à literalidade) na Constituição Federal de 1967[3] e na Emenda Constitucional nº 1, de 17.10.1969 ("EC 1/69")[4]

Não por outro motivo, tal disposição consta da redação original dos arts. 36 e 37 do Código Tributário Nacional ("CTN")[5]:

"Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:
I - quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;
II - quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.
Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos"
Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição." (g.n.)

Verifica-se, portanto, que os únicos pressupostos fáticos para aplicação da norma regente da imunidade tributária são os seguintes: (a) que o imóvel seja incorporado ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital e (b) que a atividade preponderante da pessoa jurídica adquirente não seja a "compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil".

Apesar da taxatividade desses dispositivos, diversos municípios passaram a exigir o ITBI sobre a diferença positiva entre o valor do imóvel transferido à pessoa jurídica (geralmente apurado a partir de critérios fixados unilateralmente pela própria municipalidade) e o capital social a ser integralizado, instituindo, na prática, um novo pressuposto fático para aplicação do art. 156, §2º, inciso I, da Constituição Federal.

Justamente em razão da ocorrência reiterada desse quadro fático é que o tema ensejou a análise do STF. No caso concreto analisado pela Corte Suprema, os sócios da pessoa jurídica Lusframa Participações Societárias Ltda acordaram que o capital social dessa empresa seria de R$ 24.000,00 e o integralizaram com 17 imóveis que avaliaram em R$ 802.724,00, registrando a diferença (R$ 778.724,00) em conta de reserva de capital.

Após formalizar pedido de isenção do ITBI junto à Prefeitura Municipal de São João Batista/SC (para que pudesse promover a averbação da transferência na matrícula dos respectivos imóveis), o contribuinte foi surpreendido com decisão da municipalidade que exigiu o recolhimento do imposto sobre o valor excedente (que foi registrado na conta de reserva de capital), ao argumento de que tal montante não estaria abrangido pela norma imunizante.

A partir daí, foi impetrado mandado de segurança (repressivo) contra essa decisão, alegando-se, em síntese, violação ao direito líquido e certo à imunidade tributária, com base no art. 156, §2º, I, da Constituição Federal.

Em primeira instância, foi proferida sentença concedendo a segurança pleiteada pelo contribuinte, ao argumento de que estariam preenchidos todos os requisitos para a fruição da imunidade tributária no caso concreto (bastando, para tanto, que os imóveis fossem incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica para realização de capital).

Posteriormente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina ("TJ/SC") deu provimento ao recurso interposto pela municipalidade para reformar a decisão de piso, sob alegação de que a imunidade em questão só abrangeria o valor do imóvel suficiente à integralização do capital social.

Irresignado, o contribuinte interpôs recurso extraordinário em face dessa decisão, alegando violação ao art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, além dos princípios constitucionais da legalidade (artigo 37, II), da reserva legal (artigo 5º, II), da segurança jurídica (artigo 5º, XXXVI), da livre iniciativa e da autonomia da vontade (arts. 1º, IV, e 170).

Ao analisar a controvérsia, contudo, o STF entendeu que o valor excedente, registrado na conta de reserva de capital, poderia ser tributado pelo ITBI. No voto vencido, de lavra do Ministro Marco Aurélio (acompanhado pelos Ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Carmen Lúcia) restou consignado que a norma imunizante deveria ser interpretada de forma teleológica, sobretudo, na análise de casos situados na "zona limítrofe entre a tributação e a imunidade".

A partir daí, alegou-se que o animus do constituinte ao instituir a imunidade tributária em análise seria o de facilitar o "trânsito jurídico de bens", objetivando, em última instância, fomentar o desenvolvimento nacional (art. 3º, inciso III, da Constituição Federal). Assim, o simples fato de o valor do imóvel ser superior ao capital social integralizado não seria suficiente para descaracterizar a finalidade precípua dessa regra imunizante.

Isso, porque o excesso registrado na conta de reserva de capital (que, frise-se, também integra o patrimônio líquido da pessoa jurídica) representaria "investimento direto na sociedade empresária, tanto quanto a integralização de capital pura e simples", devendo receber, portanto, o mesmo tratamento tributário dispensado ao capital social integralizado.

O voto vencedor, redigido pelo Ministro Alexandre de Moraes (e acompanhado pelos Ministros Dias Toffoli, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Rosa Weber, Roberto Barroso), por seu turno, sustentou que o §2º, inciso I, do artigo 156 da Constituição Federal seria taxativo no sentido de que somente o valor do imóvel destinado à integralização do capital social é que estaria abrangido pela regra imunizante, sendo necessário, portanto, que a norma fosse interpretada de forma extensiva para albergar o excesso que foi escriturado pelo contribuinte na conta de reserva de capital (o que não seria admitido em matéria de imunidade tributária).

Além disso, alegou-se que que seria incongruente presumir que uma sociedade com capital social de R$ 24.000,00 tivesse interesse na constituição de reserva de capital em valor quase 30 vezes maior (R$ 750.000,00), fato que sugestionaria, inclusive, que o procedimento adotado pelo contribuinte teria sido engendrado justamente com o objetivo de elidir o fisco - destoando, pois, da finalidade da norma (fomento à livre iniciativa):

"Ainda que o preceito constitucional em apreço tenha por finalidade incentivar a livre iniciativa, estimular o empreendedorismo, promover a capitalização e o desenvolvimento das empresas, não chega ao ponto de imunizar imóvel cuja destinação escapa da finalidade da norma.
"No caso concreto, a diferença entre o valor do capital social e os imóveis incorporados é de R$ 778.724,00. É de indagar-se a razão pela qual uma empresa, cujo capital social é de R$ 24.000,00, pretende constituir uma reserva de capital em montante tão superior ao seu capital, e, sobretudo, livre do pagamento de imposto."

Vê-se, portanto, que foram dois os requisitos fáticos utilizados pelo STF para afastar a imunidade de ITBI prevista no art. 156, §2º, inciso II da CF: (a) o total das quotas integralizadas no capital social foi inferior ao valor atribuído ao imóvel pelos sócios para fins de sua transmissão e (b) a diferença positiva entre esses valores foi registrada na conta de reserva de capitais.

Por outro lado, resta claro que o STF ratificou que não há incidência de ITBI nos casos em que o capital social integralizado corresponde ao valor do imóvel transferido à pessoa jurídica. Esse racional pode ser extraído não só, a contrário sensu, a partir das premissas fixadas anteriormente, como também constou de forma expressa em vários trechos do voto vencedor proferido no RE 796.376:

"A CARTA MAGNA de 1988 imunizou a integralização do capital por meio de bens imóveis. Do teor do inciso I acima, extrai-se que não incide o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito pelo sócio ou acionista da pessoa jurídica.
(?)
Reitere-se, as hipóteses excepcionais ali inscritas não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada, desde que, por óbvio, refira-se à conferência de bens para integralizar capital subscrito.
Revelaria interpretação extensiva a exegese que pretendesse albergar, sob o manto da imunidade, os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, e sim a outro objetivo - como, no caso presente, em que se destina o valor excedente à formação de reserva de capital." (g.n.)

Justamente por isso é que, como já dito, a decisão proferida pelo STF não pode ser aplicada indiscriminadamente para viabilizar toda e qualquer cobrança de ITBI que envolva a realização de capital.

Não se aplica, por exemplo, às exigências de ITBI decorrentes da diferença entre o valor venal (fixado unilateralmente pela própria municipalidade) e o valor histórico do imóvel. Afinal, não há uma única linha sequer no julgado destinada a abordar os critérios para fixação do valor do imóvel, presumindo-se, portanto, que este montante pode ser fixado com base no valor histórico (utilizado para fins de apuração do Imposto de Renda) ou no valor atualizado (mercado), desde que não ultrapasse o capital social integralizado.

Vale frisar que esse raciocínio se mantém incólume mesmo que a diferença entre o critério utilizado pela municipalidade (valor venal) e o utilizado pelo contribuinte (valor histórico) implique na apuração de eventual divergência entre o valor do imóvel e das quotas integralizadas.

Isso, porque, nessa hipótese, diferentemente do que ocorreu no contexto fático analisado pelo STF, todo o valor do imóvel incorporado ao patrimônio da pessoa jurídica foi revertido na integralização do capital social (não havendo, por decorrência lógica, qualquer excesso passível de registro na conta de reserva de capital).

Assim, a eventual diferença positiva entre o valor do imóvel e das quotas integralizadas é um mero reflexo da divergência do critério utilizado para a fixação do valor do imóvel (que não foi objeto de efetiva análise pelo STF) e não do procedimento adotado pelo contribuinte na ocasião da transferência do imóvel para integralização do capital social (este sim, efetivamente analisado pela Corte Suprema).

Daí o motivo pelo qual, mesmo em se tratando de casos que versem sobre a diferença entre o valor do imóvel e do capital social integralizado, o entendimento exarado pelo STF não pode ser aplicado de forma irrestrita/automática, sendo imprescindível a análise das peculiaridades fáticas do caso concreto para que possa precisar a origem dessa divergência.

Essa distinção é importante, porque, antes mesmo da conclusão do julgamento do RE 796.376, muitos municípios já demonstravam uma forte inclinação para associar toda e qualquer discussão relacionada à cobrança de ITBI (nos casos de realização de capital) à controvérsia analisada pelo STF.[6]

Com o trânsito em julgado da decisão favorável ao Fisco no RE 796.376, obviamente, a tendência é que essa generalização se intensifique, o que torna ainda mais relevante a delimitação da matéria que foi efetivamente analisada pela Corte Suprema na ocasião.

 
[1] Descrição do tema no site do STF:
"Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 1º, IV, 5º, II e XXXVI, 37, caput, 156, § 2º, I, e 170 da Constituição Federal, o alcance da imunidade tributária do Imposto de Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis - ITBI, prevista no art. 156, § 2º, I, da Lei Maior, em relação à incorporação de imóveis ao patrimônio de empresa, nos casos em que o valor total desses bens excederem o limite do capital social a ser integralizado".
[2] Art. 9º (...) §2º O impôsto não incide sôbre a transmissão dos bens ou direitos referidos neste artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquelas cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.
[3] Art. 24 (...) §3º - O imposto a que se refere o nº I não incide sobre a transmissão de bens Incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica nem sobre a fusão, incorporação, extinção ou redução do capital de pessoas jurídicas, salvo se estas tiverem por atividade preponderante o comércio desses bens ou direitos, ou a locação de imóveis.
[4] Art. 23 (...) §3º O impôsto a que se refere o item I não incide sôbre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sôbre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação ou extinção de capital de pessoa jurídica, salvo se a atividade preponderante dessa entidade fôr o comércio dêsses bens ou direitos ou a locação de imóveis.
[5] Esse dispositivo foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, justamente por convergir com o disposto no artigo 156, §2º, inciso I, como, aliás, reconhecido pelo próprio STF no RE 796.376:
"O inciso I do art. 36 do Código Tributário Nacional reflete esse mandamento constitucional, ao dispor que: (...) Esse dispositivo foi recepcionado pela CF/88, por se harmonizar com o teor do inciso I do § 2º, do art. 156 da Lei Maior."
[6] A título exemplificativo, vale registrar que há decisões de indeferimento (ou deferimento parcial) de pedidos de isenção de ITBI proferidas no âmbito municipal, que estão pautadas tão somente no Parecer proferido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional ("PGFN") nos autos do RE 796.376.

 
*Bruno Panace Olivieri é advogado. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.