Tribunal de Impostos e Taxas decide que norma concedente de benefício fiscal não deve ser interpretada de forma literal - Gabriel Miranda Batisti*
Em sessão de julgamento realizada no dia 7.7.2020, a Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo ("TIT") analisou recurso que discutia a interpretação de norma concedente de benefício fiscal e concluiu pela adoção do método de interpretação teleológico ou finalístico, em detrimento do método literal, defendido pelo Fisco.
O processo teve origem em um auto de infração e imposição de multa ("AIIM")[1] que acusava o contribuinte de ter se aproveitado de maneira indevida da isenção prevista no art. 14 do Anexo I, do Decreto nº 45.490, de 30.11.2000 ("RICMS/SP").[2]
A norma isenta o recolhimento do ICMS em operações com determinados equipamentos e insumos cirúrgicos, listados no Anexo Único do Convênio ICMS nº 01, de 8.3.1999 ("Convênio ICMS n. 01/99"). Da leitura do art. 14, do Anexo I, do RICMS/SP, infere-se que as condições para a fruição do benefício seriam, essencialmente:
i.os equipamentos e insumos utilizados em cirurgias devem estar "arrolados" no Anexo Único do Convênio ICMS nº 01/99;
ii.os produtos devem estar amparados por isenção ou alíquota zero do Imposto sobre Produtos Industrializados ("IPI") e do Imposto de Importação ("II"); e
iii.o Convênio ICMS nº 01/99 deve estar vigente.
No caso em comento, a autuação decorreu de uma divergência entre a interpretação do Fisco e a do contribuinte a respeito da abrangência da isenção.
O contribuinte comercializou mercadorias denominadas "Stents" e entendeu que as operações seriam isentas do ICMS, na medida em que tais produtos estariam previstos no item 191 do Anexo Único do Convênio ICMS nº 01/99. O item diz respeito aos bens classificados na NBM/SH 9021.90.81, que, à época em que foi editado o Convênio ICMS nº 01/99, estava associada à descrição "implantes expansíveis, de aço inoxidável e de cromo cobalto, para dilatar artérias Stents".
Os "Stents" comercializados pelo contribuinte não eram feitos de aço inoxidável e cromo cobalto, mas de uma liga metálica considerada mais moderna: o nitinol.
A utilização de uma liga metálica distinta das que foram citadas no Anexo Único do Convênio ICMS nº 01/99 levou a fiscalização a entender que os "Stents" fabricados pelo contribuinte não seriam isentos.
Na visão do Fisco, o art. 111 do Código Tributário Nacional ("CTN")[3] recomendaria que as normas concedentes de benefício fiscal fossem interpretadas de forma restritiva e literal, e, sob tal ótica, somente os "Stents" de aço inoxidável e cromo cobalto fariam jus à isenção. Com base nessa interpretação, a fiscalização lavrou o auto de infração, exigindo do contribuinte o recolhimento do ICMS, acrescido de encargos moratórios e penalidade.
O contribuinte apresentou defesa administrativa em face da autuação, mas o AIIM foi julgado procedente em primeira instância administrativa. A decisão foi reformada no julgamento em segunda instância perante o TIT[4], que reconheceu o direito à isenção.
Contra essa decisão, a Fazenda Pública interpôs recurso especial submetendo o caso à apreciação da Câmara Superior. O recurso, no entanto, não prosperou.
Em seu voto, o relator do recurso consignou que a Cláusula Primeira do Convênio ICMS nº 01/99[5] identificaria as mercadorias isentas pela classificação fiscal, ao passo em que a menção a determinado insumo (como o aço inoxidável e o cromo cobalto) na descrição dos equipamentos isentos não deve desvirtuar a abrangência da norma, que seria voltada aos equipamentos, em si.
Afirmou ainda que a interpretação literal deve servir como ponto de partida do processo interpretativo, mas não o seu fim. Segundo o relator, a interpretação deve considerar, além do aspecto gramatical, o aspecto finalístico, sistêmico, social e o contexto histórico em que a norma está envolvida.
Ao final, conclui que seria desproporcional retirar a isenção dos "Stents" fabricados pelo contribuinte apenas porque não seriam compostos de aço inoxidável e cromo cobalto, uma vez que a norma isentiva garantia o acesso à saúde a pacientes que possuem patologias cardíacas[6].
O entendimento adotado pela Câmara Superior do TIT se alinha a decisões dos tribunais superiores[7], especialmente o Superior Tribunal de Justiça ("STJ")[8], que têm ressaltado a necessidade de se interpretar as normas concedentes de benefícios fiscais de maneira teleológica e sistemática. Os precedentes são enfáticos ao dispor que o art. 111 do CTN não respalda interpretação meramente literal e restritiva, como a que foi defendida pelo Fisco no caso ora analisado.
Espera-se, portanto, que a decisão venha a ser considerada pelas autoridades fiscais do Estado e passe a influenciar as demais Câmaras Julgadoras do TIT, para que a jurisprudência do tribunal administrativo se alinhe à dos tribunais superiors.
[1] AIIM n. 4.090.891-4. [2] Artigo 14 (CIRURGIAS - EQUIPAMENTOS E INSUMOS) - Operação com os equipamentos e insumos utilizados em cirurgias, arrolados no Anexo Único do Convênio ICMS- 1/99, de 2 de março de 1999 (Convênio ICMS-1/99). (Redação dada ao "caput" do artigo pelo Decreto 56.804, de 03-03-2011; DOE 04-03-2011; Retificação DOE 10-03-2011; Efeitos desde 01-03-2011) [3] Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I - suspensão ou exclusão do crédito tributário; II - outorga de isenção; III - dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias. [4] Decisão proferida pela 5ª Câmara Julgadora, em 22.2.2018. [5] Cláusula primeira Ficam isentas do ICMS as operações com os equipamentos e insumos indicados no anexo a este convênio, classificados pela NBM/SH. [6] Outros três julgadores ainda proferiram votos de preferência. Um deles dava provimento ao recurso especial do Fisco por entender que a norma que concedente de benefícios fiscais deve ser interpretada de maneira literal e restritiva. Os outros dois, no entanto, seguiram a mesma linha do voto do relator, que prevaleceu ao final do julgamento, de forma favorável ao contribuinte. [7] O voto de preferência do julgador Edison Aurélio Corazza cita precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido. [8] Como exemplo de decisões do STJ: AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.087.738 - PR, DJ-e 10/12/2009; RECURSO ESPECIAL Nº 1.468.436 - RS, DJ-e 09/12/2015 e EDcl no RECURSO ESPECIAL Nº 652.784 - PR, DJ-e 12/09/2005.
*Gabriel Miranda Batisti é advogado em São Paulo. Graduado em direito pela Universidade Estadual de Londrina. Graduado em ciências contábeis pela PUC/PR. Especialista em Direito Tributário pela FGV. Mestre (LL.M) em direito tributário internacional pela University of Florida.