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CARF admite amortização de ágio apurado por empresa veículo utilizada para viabilizar compra alavancada - Paulo Coviello Filho*

O CARF analisou, por meio do acórdão n. 1301­003.469, de 20.11.2018, autuação de IRPJ e CSL decorrente de glosa de amortização de ágio apurado em aquisição de investimento, em operação de denominada comumente como compra alavancada. Ressalte-se que o ágio em análise foi apurado e amortizado sob a égide da Lei n. 9532, de 10.12.1997.

A situação de fato pode ser resumida da seguinte maneira:

Da parte vendedora:

(i)   Os vendedores constituíram uma empresa (Empresa A) na qual aportaram determinados ativos de interesse dos investidores estrangeiros;

(ii)   Posteriormente, os vendedores capitalizaram Fundo de Investimento em Participações (FIP) com as ações da Empresa A;

Da parte compradora:

(i)   Houve a constituição de uma empresa (Empresa B) por investidor estrangeiro, seguida da capitalização da empresa com recursos advindos do exterior;

(ii)   A Empresa B adquiriu ações da empresa A junto ao FIP, representativas de cerca de 70% do capital, pagando parte do preço à vista. As demais parcelas foram reconhecidas pela Empresa B como devidas para pagamento no futuro. Nessa aquisição houve a apuração de ágio, nos termos do art. 20 do Decreto-lei n. 1598, de 26.12.1977, vigente à época dos fatos (2009);

(iii)   A Empresa B foi incorporada pela Empresa A, que passou a amortizar o ágio em questão, nos termos dos art. 7º e 8º da Lei n. 9532.

Diante desses fatos, a fiscalização glosou a amortização do ágio, com base nas seguintes alegações: (i) Empresas A e B seriam empresas veículo; (ii) as partes envolvidas na aquisição não seriam independentes; (iii) como não houve pagamento de IRPJ pelo vendedor, em face do ganho de capital, tendo em vista o regime de tributação do FIP, e como houve aproveitamento do ágio, a Fazenda Pública estaria sendo duplamente prejudicada; e (iv) a operação não teve propósito negocial, motivo pelo qual o ágio deveria ser glosado, nos termos do art. 299 do RIR/1999 (atual art. 311 do RIR/2018). Além disso, a fiscalização aplicou multa de 150%, com fundamento no art. 44, parágrafo único, da Lei n. 9430, por suposta ocorrência de fraude e conluio.

O contribuinte, por sua vez, defendeu que o ágio era legítimo, apurado entre partes independentes, o que foi comprovado com a juntada de documentação hábil. Afirmou que o propósito negocial para a utilização da Empresa B foi viabilizar a compra alavancada, situação em que a empresa adquirida é responsável pelo pagamento do financiamento utilizado para a sua própria aquisição. Por sua vez, a Empresa A foi constituída para segregar os ativos que formariam o negócio do qual os investidores estrangeiros seriam sócios, separando-os de outros ativos que não eram de interesse. Por fim, defendeu que o fato de o ganho de capital não ter sido tributado, em razão do regime de tributação do FIP, seria irrelevante para a amortização do ágio apurado, não havendo na lei nenhuma vinculação entre amortização do ágio e tributação do ganho de capital. Subsidiariamente, requereu ao menos o cancelamento da multa qualificada, tendo em vista a inexistência de fraude ou conluio.

A 1ª instância administrativa julgou procedente a impugnação, cancelando a autuação, tendo reconhecido que (i) as partes eram independentes; (ii) "o fato de a parte vendedora ter obtido, artificialmente, o efeito de impedir a ocorrência do fato gerador relativo ao ganho de capital deveria ensejar a exigência do respectivo tributo da parte vendedora, e não justificar a recusa no reconhecimento dos efeitos do correspondente ágio, efetivamente suportado pela parte compradora"; e (iii) é válido o propósito negocial da Empresa B, utilizada para viabilizar a compra alavancada do investimento.

O processo foi remetido ao CARF com recurso de ofício, sendo que a 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção, em votação decidida por maioria, negou provimento ao recurso, mantendo o cancelamento da exigência fiscal. Confira-se a ementa da decisão em comento:

"LEGITIMIDADE DO ÁGIO. PARTES INDEPENDENTES.

Do ponto de vista negocial - que é o enfoque relevante para fins de verificação da legitimidade de ágio -, mesmo que combinem a estruturação de um negócio, as partes permanecem ocupando polos de interesses antagônicos, desde que não submetidas a um comando único. Em outras palavras, o fato de as partes interessadas conjuntamente definirem a estruturação do negócio não retira delas o atributo de independência, caso se verifique que não se encontrem submetidas a um único polo de interesses.

AQUISIÇÃO DE PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA COM ÁGIO. FALTA DE PAGAMENTO DE IMPOSTO SOBRE O GANHO DE CAPITAL.

O fato de a parte vendedora ter obtido, artificialmente, o efeito de impedir a ocorrência do fato gerador relativo ao ganho de capital deveria ensejar a exigência do respectivo tributo da parte vendedora, e não justificar a recusa no reconhecimento dos efeitos do correspondente ágio, efetivamente suportado pela parte compradora. Por essa razão, há que se afastar a ausência de pagamento do Imposto sobre o ganho de capital como motivo para considerar ilegítimo o ágio correspondente.

EMPRESA VEÍCULO. COMPRA ALAVANCADA. PROPÓSITO NEGOCIAL.

Na hipótese em que restar evidenciada a presença de outra finalidade - além da economia tributária produzida - que justifica a existência, ainda que efêmera, de sociedade investidora que venha a ser incorporada pela sociedade na qual possuía participação societária adquirida anteriormente com ágio, como no caso da chamada ?compra alavancada é legítimo o aproveitamento das amortizações do referido ágio pela incorporadora, à luz do que dispõe o inciso III do art. 386 do RIR/99."

O voto condutor da decisão, de lavra do Conselheiro Carlos Augusto Daniel Neto, seguiu a linha da decisão da DRJ, tendo reconhecido a independência das partes envolvidas na operação, o que se deu inclusive após coleta de informações em diligência.

No que tange à compra alavancada, a decisão fez as seguintes ponderações:

"A estrutura de aquisição do controle societário do Contribuinte pela (Empresa B), com a captação de recursos obtidos por meio de dívida, sendo o valor do financiamento relevante em relação ao preço total pago aos vendedores, é comum e normal no contexto de investimentos e aquisições de empresas. Essa prática ficou conhecida no mercado como ?compra alavancada?, ou, no inglês, ?leveraged buyout? (LBO), e se tornou popular a partir da década de 1980.

A compra alavancada consiste em transação em que o investidor adquire o controle societário de determinada empresa e uma parcela significativa do preço incorrido e financiada por meio de dívida tomada pelo comprador. A estratégia da compra alavancada geralmente consiste na criação de empresa específica que, com determinada parcela de capital próprio, capta recursos via dívida em valor relevante para realizar o investimento e, após a aquisição, o veículo e a empresa-alvo são fundidas em uma só empresa, de forma que a empresa adquirida acaba por assumir a dívida tomada pelo investidor, com o seu pagamento através das receitas operacionais e serão geradas à partir daí.

A única forma que o adquirente tinha de arcar com o montante pago na transação foi através de uma compra alavancada, o que já evidencia que o papel na (Empresa B) na transação - a sua incorporação pela (Empresa A), como etapa da compra, tinha a função de garantir o adimplemento da pesada dívida assumida com as receitas futuras da investida, o que não poderia ter sido feito da mesma forma em relação ao FIP.

Independente da vantagem fiscal da amortização do ágio, a estrutura da operação de uma compra alavancada da (Empresa B), nas condições descritas, seria sempre a mesma, não haveria uma outra opção, pela necessidade de incorporar as dívidas contraídas na investida." (destaques nossos)

Essas constatações são importantes, pois a compra alavancada é utilizada em diversos negócios praticados pelo mercado, quando o intuito é que os recursos gerados pela própria pessoa jurídica adquirida sejam utilizados para pagar o financiamento captado para a sua aquisição.

Assim, a decisão reconheceu que a utilização da Empresa A tinha como finalidade ("propósito negocial") viabilizar a própria aquisição do investimento, tendo em vista a compra alavancada.

Vale ressaltar que essa decisão não é isolada no âmbito do CARF. No mesmo sentido, destaca-se o acórdão n. 1401-003.082, de 22.1.2019:

"LEGITIMIDADE DO ÁGIO. PARTES INDEPENDENTES. AMORTIZAÇÃO ÁGIO T4U. RESTABELECIMENTO DA DESPESA.

Do ponto de vista negocial - que é o enfoque relevante para fins de verificação da legitimidade de ágio -, mesmo que combinem a estruturação de um negócio, as partes permanecem ocupando pólos de interesses antagônicos, desde que não submetidas a um comando único. Em outras palavras, o fato de as partes interessadas conjuntamente definirem a estruturação do negócio não retira delas o atributo de independência, caso se verifique que não se encontrem submetidas a um único pólo de interesses.

EMPRESA VEÍCULO. COMPRA ALAVANCADA. PROPÓSITO NEGOCIAL.

Na hipótese em que restar evidenciada a presença de outra finalidade - além da economia tributária produzida - que justifica a existência, ainda que efêmera, de sociedade investidora que venha a ser incorporada pela sociedade na qual possuía participação societária adquirida anteriormente com ágio, como no caso da chamada ?compra alavancada?, é legítimo o aproveitamento das amortizações do referido ágio pela incorporadora, à luz do que dispõe o inciso III do art. 386 do RIR/99."

É importante registrar que ambas as decisões não são definitivas, pois, segundo informações obtidas no site do CARF, houve interposição de recurso especial por parte da Fazenda Nacional.

Por fim. no que se refere à ausência de tributação do ganho de capital, o voto reconheceu que o fato de não haver pagamento do IRPJ sobre o ganho de capital não impede a amortização fiscal do ágio, pois são regras tributárias distintas, aplicáveis a sujeitos distintos. A norma relativa ao ágio somente requer que a parte adquirente efetue um sacrifício para aquisição do investimento, não fazendo qualquer comentário sobre o efeito disso na parte vendedora. Assim, caso tivesse havido irregularidade na transferência do investimento na Empresa B para o FIP, isso somente permitiria autuação sobre o referido ganho de capital, sendo irrelevante para a discussão relativa à amortização do ágio.

Houve, ainda, declaração de voto do então Presidente do Colegiado, Conselheiro Fernando Brasil de Oliveira Pinto, que ratificou integralmente os termos do voto vencedor.

Especificamente no que se refere à questão da compra alavancada, devemos ressaltar que ambas as decisões são importantes por terem reconhecido como propósito negocial válido para a utilização de empresa veículo a viabilização da operação de compra alavancada, tratando-se de importantes precedentes na discussão sobre amortização de ágio. Importante registrar, ainda, que, a princípio, não foi objeto de discussão nos autos a tese já consolidada na 1ª Turma da CSRF que requer a "confusão patrimonial" entre "real adquirente" e investida, a qual, se admitida, tornaria impossível, via de regra, o aproveitamento do ágio em situações nas quais os recursos utilizados na aquisição de investimentos são originários do exterior (vide, por exemplo, acórdão n. 9101-003.733, de 11.9.2018) .(1)

Ainda no que tange à questão da compra alavancada, apesar de louváveis as observações contidas na decisão, deve-se ressaltar que não se pode admitir a desconsideração de negócios jurídicos com base na suposta ausência de propósito negocial. Realmente, como é cediço, o ordenamento jurídico brasileiro não incorporou a existência de propósito negocial como requisito para a validade de negócios jurídicos, de forma que a suposta falta de propósito negocial não pode motivar a desconsideração dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes. Nesse sentido, veja-se o acórdão n. 1302-001.150, de 7.8.2013 . (2)

Tanto isso é verdade que regras gerais anti-elisivas, baseadas em propósito negocial ou em interpretações econômicas, foram repelidas pelo Congresso Nacional em pelo menos em quatro oportunidades: (i) em 1966, quando o art. 74 do projeto do Código Tributário Nacional ("CTN") tentou introduzir a interpretação econômica no sistema tributário brasileiro; (ii) em 2001, quando o projeto da Lei Complementar n. 104/2001 tentou introduzir uma regra geral anti-elisiva ampla no art. 116, parágrafo único, do CTN, cuja redação foi alterada e restringida pelos congressistas brasileiros para alcançar apenas negócios dissimulados; (iii) em 2002, quando a Medida Provisória n. 66/2002 foi aprovada sem as disposições anti-elisivas originalmente previstas; e (iv) em 2015, quando a Medida Provisória n. 685/2015 tentou introduzir a obrigatoriedade de divulgação de planejamento tributário no Brasil, mas foi rejeitada pelo Congresso nacional .

Apesar dessa observação, não se pode negar que a jurisprudência administrativa tem dado muita importância à questão do propósito negocial, de forma que a existência de decisões nesse sentido, reconhecendo a viabilização da operação de compra alavancada como motivo negocial para utilização da empresa-veículo, deve ser prestigiada, considerando inclusive a restritiva jurisprudência sobre ágio daquela Corte.

 
1 Sobre o tema e a ausência de suporte legal para tal tese, confira-se: BIFANO, Elidie Palma; FAJERSZTAJN, Bruno. O Pagamento de Ágio na Compra de Participações Societárias e a Segurança Jurídica. In: SCHOUERI, Luis Eduardo; BIANCO, João Francisco (Coord.). Estudos de Direito Tributário - em Homenagem ao Professor Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Ed. Quartier Latin, p 493-534, 2016. FAJERSZTAJN, Bruno; COVIELLO FILHO, Paulo. "Transferência" de ágio por meio da chamada empresa-veículo. Reflexões sobre o tema à luz da lógica e da finalidade dos arts. 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Editora Dialética, n. 231, p. 25-44, Dezembro/2014.
2 Confira-se o seguinte trecho: "Os julgadores do CARF prestarão um grande serviço ao Estado e a sociedade brasileiras se imprimirem segurança jurídica e isonomia ao sistema, evitando que suas decisões fiquem ao sabor lotérico do entendimento de cada conselheiro sobre conceitos vagos não positivados como, por exemplo, 'falta de propósito negocial', que não passa de uma construção jurisprudencial alienígena sem respaldo no ordenamento jurídico pátrio."

 
Paulo Coviello Filho*