Decisoes.com.br - Jurisprudência Administrativa e Judiciária, Decisões de dezenas de Tribunais, STF, STJ, TRF, TIT, Conselhos de Contribuintes, etc.
Usuários
Lembrar usuário
Lembrar senha

Pesquisar em
Doutrina
Boletins
Todas as Áreas
Áreas Específicas
Tribunais e Órgãos abrangidos
Repercussão Geral (STF)
Recursos Repetitivos (STJ)
Súmulas (STF)
Súmulas (STJ)
Matérias Relevantes em Julgamento


Localizar nessa página:   
 

CARF reconhece liberdade de organização dos contribuintes para buscar economia fiscal, desde que não haja prática de simulação - Paulo Coviello Filho*

Artigo - Federal - 2019/3670

Em 11.12.2018, por meio do acórdão n. 1302-003.276, a 2ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção do CARF reconheceu a liberdade dos contribuintes em reorganizar suas atividades, desde que não haja prática de atos ilícitos, consignando que inexiste qualquer ilicitude na constituição, pelos sócios de determinada pessoa jurídica, de nova pessoa jurídica para executar parte da produção industrial anteriormente terceirizada, com posterior venda exclusiva para a pessoa jurídica pré-existente.

Conforme relatório da decisão, a fiscalização acusou o contribuinte de praticar "planejamento tributário abusivo", pois "os sócios da fiscalizada criaram uma segunda empresa para executar parte da produção e reduzir a tributação incidente sobre o lucro (IRPJ e CSLL), além de gerar créditos indevidos de PIS e de COFINS."

Ainda segundo o relatório, tanto a empresa pré-existente, aqui denominada A, quanto a nova pessoa jurídica, doravante B, possuíam o mesmo quadro societário, com idêntica participação societária. Verificou-se que B executava parte da produção de A, fabricando produtos por encomenda exclusivamente à autuada (A). A fiscalização também indicou que empregados da pessoa jurídica B foram transferidos para A, a receita de B era exclusivamente decorrente das vendas realizadas para A e B optou pela tributação pelo lucro presumido.

Nas palavras da fiscalização, a pessoa jurídica A "ao ampliar sua produção, optou por abrir outra empresa a abrir uma filial como forma de planejamento tributário, com intuito único de reduzir sua carga tributária, estando viciado seu contrato social e objetivos sociais, importando em abuso de direito".

Com base nesse raciocínio, houve a desconsideração da pessoa jurídica B, o que acarretou a lavratura de autos de infração de IRPJ, CSL, contribuição ao PIS e COFINS em face de A.

Segundo o relatório, em resumo, o contribuinte alegou em sua defesa que (i) não foram feitas provas do alegado planejamento tributário abusivo, (ii) a nova pessoa jurídica era efetiva assim como as operações por ela realizadas, (iii) antes da constituição de B havia a terceirização dessa parte da produção, o que afasta a alegação de que teria havido transferência de parcela do processo fabril de A para B, (iv) o imóvel onde estava instalado o parque fabril de B nunca foi de propriedade de A, mas de seu sócio, que também é sócio de B e (v) os orçamentos de outras pessoas jurídicas apresentados evidencia a coerência e licitude das operações.

A primeira instância administrativa cancelou a autuação, tendo reconhecido que a abertura de nova pessoa jurídica, com autonomia operacional e financeira, para realizar processo produtivo anteriormente terceirizado, não configura planejamento tributário ilícito ou abusivo, ainda que desta organização decorra economia tributária.

O processo foi remetido ao CARF com recurso de ofício, sendo que a 2ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção do CARF, por meio do acórdão n. 1302-003.276, de 11.12.2018, em votação decidida por unanimidade, negou provimento ao mesmo. Confira-se a ementa da decisão do CARF:

"PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO. SIMULAÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO.

A reorganização empresarial pode ser realizada pelo contribuinte, da forma que melhor entender, desde que não haja prática de atos simulados e praticados ao arrepio da legislação.

Não pode ser considerada como simulação, a ensejar a desconsideração do negócio jurídico praticado, a abertura de nova pessoa jurídica para realizar processo produtivo anteriormente terceirizado, quando se demonstra que havia parque industrial próprio, autonomia financeira e operacional, quadro de empregados distinto e que as operações foram realizadas efetivamente."

Inicialmente, a decisão reconheceu que a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso II, concretiza o princípio da legalidade, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Adiante, a decisão também consignou que o art. 170 da Carta Magna reconhece que a ordem econômica é fundada na livre iniciativa. Esses aspectos foram destacados com o intuito de verificar que os contribuintes são livres para agir e organizar seus negócios, desde que não pratiquem atos ilícitos.

Ainda em sua parte preliminar, a decisão fixou duas premissas, a saber: (i) o propósito negocial não é um requisito para aferição da legalidade ou não de eventual planejamento tributário, e (ii) o fisco pode desconsiderar atos se ficar comprovada a simulação ou prática de alguma ilicitude, sendo que a partir desta desconsideração poderá imputar obrigações tributárias de acordo com a realidade negocial praticada pelas partes.

Inserido o referencial teórico, a decisão passou a analisar os fatos propriamente ditos, tendo consignado que:

- a afirmação da fiscalização de que a pessoa jurídica B deveria ser uma filial de A não possui qualquer fundamento, tendo em vista que as pessoas são livres para organizar os negócios como bem entendem;

- na presente situação, não houve a prática de qualquer ato simulado na constituição da nova pessoa jurídica B, tampouco nos negócios praticados, tendo sido constatado que A e B possuíam autonomia operacional e financeira, assim como quadro de empregados distintos com números relevantes e espaços físicos distintos;

- os produtos industrializados por B eram, anteriormente, comprados de terceiros; e

- finalmente, a fiscalização não demonstrou a prática de preços abusivos nas operações.

Diante dessas constatações, o CARF optou por manter integralmente a decisão da 1ª instância administrativa, confirmando o cancelamento integral dos autos de infração.

A decisão é irrepreensível, pois reconheceu expressamente a liberdade dos contribuintes em organizar seus negócios, o que advém da própria Constituição Federal. Outro acerto da decisão foi reconhecer que a existência de propósito negocial não é requisito para validade de negócio jurídico.

Importante ressaltar, ainda, que o fato de a existência de duas empresas separadas e independentes, ainda que ambas sejam de propriedade da mesma pessoa, resultar em economia fiscal não pode ser justificativa para desconsideração dessas pessoas jurídicas e dos negócios por elas praticados.

Realmente, a existência ou não de simulação não deve estar pautada exclusivamente no propósito das partes, devendo ser identificada a partir da causa jurídica dos negócios realizados.

Realmente, cada ato ou negócio jurídico, qualquer que seja, possui uma causa, denominada pela doutrina como "causa jurídica", "causa de atribuição patrimonial", "causa substancial", "causa típica", dentre outras denominações, inclusive simplesmente "causa", a qual corresponde à função que o ato ou negócio desempenha no ordenamento jurídico segundo a disciplina que a lei lhe outorga (quando típico).

A causa é a função assegurada pela lei para a realização de atos da vida patrimonial e negocial, identificando-se pelo conjunto da prestação e da contraprestação de cada ato ou negócio jurídico e, por conseguinte, com o efeito que ele produz.

Nesse sentido, Moreira Alves preleciona que, além de corresponder à "função prática" do ato ou negócio jurídico, a causa não se confunde com o motivo que leva ao estabelecimento dos negócios jurídicos . Vejamos os ensinamentos do eminente jurista :

"(...) a causa de um negócio jurídico difere dos motivos que levaram as partes a realizá-lo. Com efeito, a causa se determina objetivamente (é a função econômico-social que o direito objetivo atribui a determinado negócio jurídico); já o motivo se apura subjetivamente (diz respeito aos fatos que induzem as partes a realizar o negócio jurídico). No contrato de compra e venda, a causa é a permuta entre a coisa e o preço (essa é a função econômico-social que lhe atribui o direito objetivo; essa é a finalidade prática a que visam, necessária e objetivamente, quaisquer que sejam os vendedores e quaisquer que sejam os compradores; os motivos podem ser infinitos (assim, por exemplo, alguém pode comprar uma coisa para presentear com ela um amigo). (...) A distinção entre causa e motivo é importante porque, em regra, a ordem jurídica não leva em consideração o último".

Adotando-se os ensinamentos supramencionados, é de se concluir que, no âmbito jurídico, os motivos pelos quais os particulares praticam atos e negócios jurídicos são de ordem subjetiva, e, assim sendo, não guardam relação com a função econômico-social do negócio jurídico, materializada na figura da "causa", que, em sentido oposto, constitui critério objetivo.

Portanto, ainda que o motivo (ou intuito) das partes seja obter economia fiscal, caso esse intuito seja atingido por meio de negócios jurídicos válidos, que respeitem a sua causa típica, não se pode admitir a sua desconsideração unicamente em razão da ausência de propósito negocial, justamente por conta dos motivos estarem alheios à apreciação da validade do ato jurídico - "(...) a ordem jurídica não leva em consideração o último [motivo]".

Consequentemente, ainda que a organização do negócio tenha como objetivo a economia fiscal, a sua realização por meio de atos efetivos e reais não pode ser objeto de desconsideração pelas autoridades fiscais somente por esse motivo.

[1] ALVES, José Carlos Moreira. "As Figuras Correlatas da Elisão Fiscal". Revista Fórum de Direito Tributário n. 1. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 11. No mesmo sentido, vide: ALVES, José Carlos Moreira. Palestra inaugural do XVIII Simpósio Nacional de Direito Tributário do Centro de Extensão Universitária. "Pesquisas Tributárias - Nova Série - 10". São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 13.

[2] ALVES, José Carlos Moreira. "Direito romano". 13ª edição. Rio de Janeiro: Forense, p. 151

 
Paulo Coviello Filho
Advogado, graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e graduando em Ciências Contábeis pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Email:
pcf@marizsiqueira.com.br