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Evasão de divisas: alargamento do tipo pelas Cortes Superiores após o julgamento da AP 470/STF -
Mauro Vitória do Nascimento Neto Marchiori*

Artigo - Federal - 2018/3641

O Direito Penal Econômico tutela bens jurídicos amplos. Com a mundialização da economia, muitas transformações estão em marcha. Nesse contexto, a globalização decorrente da vida moderna, com todas as consequências positivas e negativas que lhe são inerentes, acaba ensejando uma criminalidade tecnológica e transnacional.

Nas palavras do Desembargador Federal Fausto Martin de Sanctis, da 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, "a conceituação de crime econômica não é tarefa simples, não podendo ser mensurado apenas pela extensão dos danos que ocasiona" . Com base em tais considerações, o referido autor assenta que é a natureza coletiva ou supraindividual dos interesses ou bens jurídicos que determinam a tipificação das infrações contra a economia.

Diante de tais considerações, a Lei n. 7492, de 16 de junho de 1986, trata sobre os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (SFN). O referido diploma objetiva a proteção da credibilidade das instituições financeiras. Conforme assentado no voto condutor do Ministro Arnaldo Esteve Lima do acórdão proferido no julgamento da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Conflito de Competência n. 91.162-SP, a Lei n. 7492 "busca a preservação das instituições públicas e privadas que compõem o sistema financeiro, de modo a viabilizar a transparência, a licitude, a boa-fé, a segurança e a veracidade". No referido voto registrou-se que o "o objeto jurídico tutelado é a garantia da solvência das instituições financeiras e a credibilidade dos agentes do sistema."

O relevo constitucional da tutela penal do SFN está contida no artigo 192 da Carta Maior que prevê como objetivos "o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito".

Neste particular, verifica-se que o bem jurídico objetivado pela Lei n. 7492 tem conexão com o bem da Lei n. 9613, de 3 de março de 1998, (diploma que trata dos crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores) que, por sua vez, objetivou a preservação da paz pública, de forma a inibir a prática do delito antecedente em benefício da Ordem Econômica, da Administração da Justiça e, ainda, do próprio Sistema Financeiro.

Dentro do contexto dos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal Econômico, o crime de evasão de divisas tem previsão no artigo 22 da Lei n. 7492/86. A conduta tipificada pelo referido dispositivo é "efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País". O parágrafo único do dispositivo estende a aplicação da pena para aquele que "a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente".

As autorizações previstas do artigo 22 da Lei n. 7492/86 se referem aos atos praticados perante o Banco Central do Brasil (BaCen), conforme previsto no artigo 1º do Decreto-Lei n. 1060, de 21 de outubro de 1969.

Ou seja, incorre no crime de evasão de divisas aquele que efetuar operação de câmbio não autorizada pelo BaCen ou que promova a saída de moeda ou divisa, ou que mantenha depósitos não declarados, sem a respectiva declaração perante o BaCen.

O conceito de evasão, na perspectiva do artigo 22 da Lei n. 7492/86, é a saída clandestina do país. Já o conceito de divisas compreende qualquer valor comercial sobre o estrangeiro que permita a efetuação de pagamentos na forma de compensação.

Ocorre que o conceito de evasão, à luz do Direito Penal Econômico, passou por uma mudança após o julgamento da Ação Penal n. 470 (AP 470/MG) pelo Supremo Tribunal Federal, mais conhecida como o caso do Mensalão.

No emblemático julgamento, o Plenário do Pretório Excelso aplicou entendimento que o tipo evasão não depende da efetiva remessa das divisas para o exterior. Tal entendimento se apresenta diante do contexto das operações de dólar-cabo. Essa modalidade de operação é comumente praticada por doleiros como forma de burlar o registro das operações perante o BaCen.

As operações de dólar-cabo ocorrem com base na troca de moedas em uma estrutura de câmbio sacado à distância. Nessa operação, há depósito de quantia em moeda na conta do vendedor no Brasil, que entrega o correspondente em outra no exterior.

Esse tipo de operação vai de encontro com o enunciado contido no artigo 65 da Lei n. 9069, de 29 de junho de 1995, que prevê:

Art. 65. O ingresso no País e a saída do País de moeda nacional e estrangeira devem ser realizados exclusivamente por meio de instituição autorizada a operar no mercado de câmbio, à qual cabe a perfeita identificação do cliente ou do beneficiário.

§ 1º Excetua-se do disposto no caput deste artigo o porte, em espécie, dos valores:

I - quando em moeda nacional, até R$ 10.000,00 (dez mil reais);

II - quando em moeda estrangeira, o equivalente a R$ 10.000,00 (dez mil reais);

III - quando comprovada a sua entrada no País ou sua saída do País, na forma prevista na regulamentação pertinente.

Ou seja, excetuadas as operações dentro dos limites do parágrafo 1º, do artigo 65, todas as operações de câmbio devem ocorrer através das instituições autorizadas pelo BaCen para operar no mercado de câmbio. A entrada e saída de moeda estrangeira no território nacional ocorrem mediante transferência bancária, com posterior registro no SISBACEN. As operações de dólar-cabo são definidas pelo Bacen como: "Dólar negociado no mercado paralelo para depósito em instituição no exterior".

Pela ratio decidendi que consubstanciou os votos dos Ministros na AP 470/MG, a configuração do tipo evasão prescinde da saída física da divisa do território nacional. É o que se observa da ementa do acórdão proferido na AP 470 (DJ 17.12.2012):

"(...) A materialização do delito de evasão de divisas prescinde da saída física de moeda do território nacional. Por conseguinte, mesmo aceitando-se a alegação de que os depósito em conta no exterior teriam sido feitos mediante as chamadas operações "dólar-cabo", aquele que efetua pagamento em reais no Brasil, com o objetivo de disponibilizar, através do outro que recebeu tal pagamento, o respectivo montante em moeda estrangeira no exterior, também incorre no ilícito de evasão de divisas. (...)"

Com base no precedente formado a partir do julgamento da AP 470, o C. STJ tem aplicado o referido entendimento em que não se figura como elemento essencial do tipo a efetiva saída das divisas do território nacional.

É o que se observa no acórdão da Quinta Turma proferido no AgRg no REsp 1691688/RS, Rel. Min. Felix Fischer, DJe 30.5.2018, conforme ementa reproduzida abaixo:

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. OPERAÇÃO CURAÇAO. CRIME DE EVASÃO DE DIVISAS. ART. 22 DA LEI 7.492/86. (...) OPERAÇÃO "DÓLAR-CABO". PRESCINDIBILIDADE DA SAÍDA FÍSICA DE MOEDA DO TERRITÓRIO NACIONAL PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO DE EVASÃO DE DIVISAS. TESE ADOTADA PELO STF NO JULGAMENTO DA AP 470 - MENSALÃO E PRECEDENTES DESTA EG. (...) III - Por meio de operações "dólar-cabo" os recorrentes promoveram, dolosamente, em burla à fiscalização do Banco Central e da Receita Federal, o envio de divisas para o exterior, o que configura o delito previsto no art. 22 da Lei 7.492/86. No que concerne à tese defensiva de atipicidade da conduta, não merece ser provido o recurso, pois, como bem acentuado pelo Colegiado a quo, é desnecessária a saída física de moeda do território nacional para a configuração do tipo previsto no art. 22 da Lei 7.492/86. AP 470/STF (Mensalão) e precedentes desta eg. Corte Superior. (AgRg no REsp 1691688/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 24/05/2018, DJe 30/05/2018)

Também é o que se verifica da ementa do acórdão proferido pela Sexta Turma no AgRg no REsp 143060/RS, Rel. Mina. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 13.11.2017:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. INOCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 619 DO CPP. INEXISTÊNCIA. QUESTÕES DECIDIDAS. OPERAÇÃO OURO VERDE. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. EVASÃO DE DIVISAS. OPERAÇÃO DÓLAR-CABO. TIPICIDADE. DOLO ESPECÍFICO. DESNECESSIDADE. DOSIMETRIA. ELEVADO VALOR EVADIDO. VALORAÇÃO NEGATIVA DO VETOR CONSEQUÊNCIAS. (...) 3. Com o julgamento da Ação Penal nº 470, no Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, consolidou-se o entendimento de que "aquele que efetua pagamento em reais no Brasil, com o objetivo de disponibilizar, através do outro que recebeu tal pagamento, o respectivo montante em moeda estrangeira no exterior, incorre no ilícito de evasão de divisas, caracterizando o crime previsto no art. 22, parágrafo único, primeira parte, da Lei 7.492/1986 a prática das operações "dólar-cabo". (...) 4. É firme a jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de que a conduta tipificada na primeira parte do parágrafo único do artigo 22 da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, diversamente daquela descrita no caput do referido dispositivo legal, não exige elemento subjetivo próprio para que seja consumado o delito, bastando, para tanto, o envio de moeda ao exterior sem a devida autorização legal. (...) (AgRg no REsp 1430360/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07/11/2017, DJe 13/11/2017)

Ademais, na ementa do acórdão proferido pela Quinta Turma no AgRg no REsp 1573577/RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 29.6.2016, verifica-se o fundamento para se afastar a alegação de atipicidade da conduta das operações de dólar-cabo:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME DE EVASÃO DE DIVISAS. MONTANTE EVADIDO. VALOR QUE SUPERA R$ 10.000,00. MODIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. DIVERSAS OPERAÇÕES "DÓLAR-CABO" INFERIORES A R$ 10.000,00. TIPICIDADE. ACÓRDÃO REGIONAL EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. RECURSO DESPROVIDO. (...) 2. "No caso das operações "dólar-cabo" existe uma grande facilidade na realização de centenas ou até milhares de operações fragmentadas sequenciais. É muito mais simples do que a transposição física, por diversas vezes, das fronteiras do país com valores inferiores a R$ 10.000,00. Admitir a atipicidade das operações do tipo "dólar-cabo" com valores inferiores a R$ 10.000,00 é fechar a janela, mas deixar a porta aberta para a saída clandestina de divisas." (ut, REsp 1535956/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, DJe 9/3/2016) 3. Agravo regimental improvido.

AgRg no REsp 1573577/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 21/06/2016, DJe 29/06/2016)

Com base em tais precedentes, verifica-se que as Cortes Superiores alargaram o tipo previsto no caput do artigo 22 da Lei n. 7492/86, afastando os fundamentos apresentados pelas defesas no sentido da atipicidade da conduta, pela ausência de saída física da moeda ou divisa.

O referido entendimento das Cortes Superiores passa a tratar a saída de divisas não só como o envio em espécie da moeda ou divisa ao exterior, mas também a operação cujo resultado contábil gera um crédito liquidável no estrangeiro. Nesse sentido, o crime se consuma na momento em que o agente, diretamente ou com auxílio material de terceiros, logra a saída da moeda ou divisas: se a evasão é em espécie, tal ocorrerá com a transposição de nossas fronteiras pelo agente que porta a moeda ou as divisas; se a evasão é por meio de câmbio-sacado, verificar-se-á o momento consumativo com a concretização da operação capaz de gerar a disponibilidade no exterior.

Tais precedentes revelam que as Cortes Superiores, em linha com contexto de globalização e mundialização da economia em que se insere o Direito Penal Econômico, não se desemcumbirão de reprimir a criminalidade tecnológica e transnacional, com o objetivo de proteger os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal Econômico.

1 SANCTIS, Fausto Martin De. Delinquência econômica e financeira: colarinho branco, lavagem de dinheiro, mercado de capitais. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 10-11.

2 SANCTIS, op. cit., p. 10-11.

3 CC 91.162/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 12/08/2009, DJe 02/09/2009, p. 5.

4 Trecho extraído do voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento da Ação Penal 470, julgamento em 12.9.2012, p. 18-19 (STF-Fl. 54679-54680).

5 No dicionário Houaiss da língua portuguesa, verifica-se que divisa tem significação econômica que compreende: 6 letras, cheques, ordens de pagamento etc., convertíveis em moedas estrangeiras, ou as próprias moedas usadas em transações comerciais. (HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 702). Na jurisprudência do Tribunais Nacionais também já se identificou no conceito de divisas o ouro, como ativo financeiro ou instrumento cambial, conforme disposto no Decreto-Lei n. 581/69

6 SANCTIS, op. cit., p. 119.

7 SCHMIDT, Andrei Zenkner, FELDENS, Luciano. O crime de evasão de divisas: a tutela penal do sistema financeiro nacional na perspectiva da política cambial brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2006, p. 169; 174-175.

 
Mauro Vitória do Nascimento Neto Marchiori é advogado. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - FSRP-USP.