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A cisão parcial e os limites da liberdade negocial na disciplina privada da sucessão das obrigações de natureza societária - Recurso Especial n. 1.642.118/SP
Marcio Pedrosa Junior*

Artigo - Federal - 2017/3628

Em decisão publicada no dia 20.2.2018, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), reconheceu, em um caso de cisão parcial, a responsabilidade da sociedade cindenda sobre débito decorrente de diferenças acionárias na conversão de debêntures requerida antes da consumação da operação societária.

O acórdão seguiu o voto vencedor proferido pelo Ministro Marco Au-rélio Bellizze, ao qual acedeu a maioria dos ministros da Turma, conforme a ementa abaixo:

"RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. AÇÃO REGRESSIVA. CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE DIFERENÇA DE AÇÕES. DEBÊN-TURES CONVERSÍVEIS EM AÇÃO PREFERENCIAL. AUMENTO DE CA-PITAL SOCIAL. CISÃO PARCIAL. DÍVIDAS PRÓPRIAS DE NATUREZA SOCIETÁRIA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. Recurso especial em que se discute a possibilidade de ação de re-gresso para ressarcimento de condenação suportada exclusivamente por empresa cindida contra a empresa que absorveu parcela de seu patrimônio líquido.

2. Para admissão da ação de regresso não se discute a responsabili-dade solidária por dívidas, mas tão somente a titularidade da obri-gação na condição de devedor.

3. A transmissão das obrigações da empresa cindida é, em regra, ob-jeto de libre contratação entre as empresas, desde que satisfeitas as condições legais estabelecidas de forma distinta para as obrigações cíveis e aquelas de natureza societária, interna corporis.

4. Inexistindo anuência de todos os acionistas, inclusive aqueles sem direito a voto (art. 229, § 5º, da LSA) quanto à atribuição de propor-ção societária diferenciada, a obrigação de emissão das ações decor-rentes de opção de debenturistas é obrigação eminentemente socie-tária, a qual somente seria cumprida mediante a emissão de ações correspondentes pelas empresas cindendas.

5. In casu, não houve a referida deliberação, de modo que a empresa cindenda é devedora da obrigação, que foi convertida em perdas e danos e suportada integralmente pela cindida, sendo, portanto, de-vida a recomposição proporcional ao patrimônio líquido por ela ab-sorvido.

6. Recurso especial provido".

O caso tratava de uma ação de regresso movida pela sociedade cindida a fim de obter, junto à sociedade que absorveu parte do seu patrimônio, a resti-tuição de parte do valor de débito que suportara em sua integralidade, decorrente de condenação judicial, a título de diferenças de ações preferenciais subscritas em razão da conversão das debentures correspondentes.

A Terceira Turma do STJ deu provimento à ação regressiva, partindo das seguintes premissas, em resumo:

(i) a questão da titularidade passiva da obrigação, da qual depende o exame do mérito da pretensão regressiva, na verificação do liame jurídico existente entre as sociedades cindida e cindenda, não se confunde com a questão da soli-dariedade passiva entre as duas sociedades, que diz respeito à sua responsabilidade perante os terceiros titulares de obrigações prévias à cisão parcial;

(ii) a liberdade negocial na disciplina privada da sucessão das obriga-ções da sociedade cindida depende da verificação da natureza da obrigação, sendo diferentes os limites legais aplicáveis, de um lado, às obrigações de índole societá-ria, decorrentes do entrelaçamento de quadro societário das sociedades envolvidas, e as obrigações comuns de caráter cível.

Os dois pontos acima serão mais bem explicados abaixo, com a identi-ficação dos respectivos efeitos na solução da lide posta ao exame do Tribunal Su-perior.

Em primeiro lugar, deve-se destacar a previsão do art. 233, da Lei n. 6404, de 15.12.1976, que disciplina a questão da solidariedade passiva em relação às obrigações anteriores à data da cisão. Leia-se:

"Art. 233. Na cisão com extinção da companhia cindida, as socieda-des que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solida-riamente pelas obrigações da companhia extinta. A companhia cin-dida que subsistir e as que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da primeira anteriores à cisão.

Parágrafo único. O ato de cisão parcial poderá estipular que as soci-edades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cin-dida serão responsáveis apenas pelas obrigações que lhes forem transferidas, sem solidariedade entre si ou com a companhia cindida, mas, nesse caso, qualquer credor anterior poderá se opor à esti-pulação, em relação ao seu crédito, desde que notifique a sociedade no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data da publicação dos atos da cisão."

A solidariedade passiva é a regra geral, permitindo, consoante a cons-trução dogmática desse instituto (arts. 264, 265 e 275 a 285, do Código Civil) que o credor das obrigações anteriores à cisão possam demandar o seu cumprimento, por inteiro (totum et totalier), seja da sociedade cindida (na cisão parcial, apenas), ou das sociedades resultantes da cisão (na cisão total ou na cisão parcial).

O parágrafo único do art. 233 admite, contudo, para o caso da cisão parcial, a possibilidade da estipulação, no ato da cisão, do afastamento da solidari-edade passiva, com a limitação da responsabilidade de cada sociedade às respectivas obrigações, conforme a quota-parte que lhe seja cabente em razão da sucessão no patrimônio da sociedade cindida.

Como a solidariedade passiva ex lege visa à tutela dos interesses dos credores na efetiva solução das obrigações, prevê a lei o direito desses credores de se oporem à estipulação limitativa da solidariedade, em relação aos respectivos créditos, o que deverá ocorrer no prazo máximo de 90 dias a contar da publicação dos atos da cisão.

Vê-se, assim, que o art. 233 determina a solidariedade passiva como regra, mas admite, na cisão parcial, a possibilidade da clausula limitativa da soli-dariedade, sujeita à não oposição do credor. Se não há solidariedade, cada devedor responde pro rata, conforme as obrigações definidas expressamente no ato de cisão.

O art. 233 trata do vínculo entre os codevedores solidários, de um lado, e o credor da obrigação, de outro (solidariedade externa), mas não disciplina, embora a ela faça referência, a questão dos vínculos existentes entre os codevedo-res entre si.

Aqui está, pois, a primeira premissa delineada acima: o vínculo man-tido entre os codevedores solidários entre si e entre esses e o credor da obrigação solidária não se confundem e não podem, assim, receber o mesmo tratamento.

Como se sabe, nas relações dos codevedores entre si, tudo opera como se não houvesse solidariedade. Se a obrigação é solidária e um dos devedores, espontânea ou compulsoriamente, adimple o compromisso por inteiro, sub-roga-se no crédito, tendo o direito de haver de cada um dos consortes a respectiva quota-parte, conforme o que tiver sido estipulado.

Pois bem. No caso examinado pelo STJ, a sociedade cindida foi compe-lida, mediante condenação judicial, a arcar, em sua integralidade, com diferenças no preço de emissão de ações preferenciais decorrentes da conversão de debentures requerida anteriormente à cisão. Posteriormente, a sociedade cindida moveu ação de regresso contra a sociedade que absorveu parte do seu patrimônio, imputando-lhe parte do débito pago ao titular das debêntures conversíveis em ações.

Vê-se, de pronto, que a demanda não tem nada que ver com a regra de solidariedade estabelecida no art. 233 da lei societária, situando-se, logicamente, em um momento posterior à sua incidência, no exame dos vínculos existentes entre a sociedade cindida, que arcou com a totalidade do débito, e a sociedade cindenda, à qual aquela pretendeu imputar uma parcela da condenação.

Pode-se invocar, nesse ponto, para regular a questão, o art. 229, para-grafo 1º, da lei societária, que regula a sucessão patrimonial no caso da cisão:

"Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere par-celas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu ca-pital, se parcial a versão.

§ 1º Sem prejuízo do disposto no artigo 233, a sociedade que absor-ver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão; no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida sucederão a esta, na proporção dos patrimô-nios líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relaciona-dos."

Segundo o expresso comando legal, na cisão, com ou sem extinção da sociedade cindida, a sociedade que absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão. Na mesma senda, em havendo omissão dos documentos relativa a alguma obrigação da cindida, cada uma das sociedades receptoras responde na proporção do pa-trimônio recebido.

No caso analisado pelo STJ, conforme o relatório dos fatos contido no acórdão, havia, no protocolo de justificação, cláusula restritiva de solidariedade passiva, imputando à sociedade cindida o dever de arcar com a integralidade das obrigações assumidas até a data da aprovação da cisão parcial, salvo a hipótese da transferência expressa de provisões. Assim, e não tendo havido, no caso, a transfe-rência, para a sociedade cindenda, de quaisquer provisões para contingências, não seria possível acolher o pedido de reembolso.

Essa foi a conclusão a que chegou o magistrado de piso, em sentença mantida em grau de apelação. Nesse mesmo sentido, foi a conclusão adotada, no STJ, pelo relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no que foi acompanhado pela Ministra Nancy Andrighi.

Essa não foi, contudo, a solução que prevaleceu na Corte, nos termos do voto vencedor proferido pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze (relator para o acórdão), que atentou para a segunda premissa elencada acima, segundo a qual, na cisão, são diferentes os limites legais impostos à liberdade negocial na disciplina privada da sucessão das obrigações de caráter civil e societário.

Consoante a distinção operada no acórdão, as obrigações de caráter tipicamente societário, de um lado, são as que decorrem do entrelaçamento do quadro societário das empresas em negociação. De outro, as obrigações de caráter civil (lato sensu) são estranhas às relações estabelecidas entre a companhia e os seus acionistas, decorrendo da apuração do patrimônio líquido da sociedade cin-dida.

Como se sabe, a cisão implica, para os investidores da cindida, uma troca de ativos. Os sócios ou acionistas recebem, em substituição às ações o que detinham na sociedade cindida, na mesma proporção, ações da sociedade que ab-sorveu parcela do patrimônio cindido. É o que dispõe o art. 229, parágrafo 5º, da Lei n. 6404, nos termos abaixo:

"§ 5º. As ações integralizadas com parcelas de patrimônio da com-panhia cindida serão atribuídas a seus titulares, em substituição às extintas, na proporção das que possuíam; a atribuição em proporção diferente requer a aprovação de todos os titulares, inclusive das ações sem direito a voto".

Os direitos dos sócios ou acionistas de receber, em substituição das ações da sociedade cindida, ações das sociedades cindendas, são, para essas, obri-gações de caráter nitidamente societário, em relação às quais não prevalece a mesma liberdade de negociação que a legislação reconhece para as obrigações de caráter cível, estranhas aos vínculos societários.

Em relação às obrigações de caráter societário, como visto, dispõe o parágrafo 5º, do art. 229, da Lei n. 6404, na cisão, o investidor deve receber ações da sociedade cindenda na mesma proporção das ações que detinha na cindida, a alteração dessa proporção dependendo da aprovação unânime de todos os sócios, inclusive os sem direito a voto.

Em relação às obrigações de caráter civil, por sua vez, a disciplina pri-vada da sucessão, na cisão, depende apenas da aprovação, em assembleia geral, da maioria dos acionistas com direito a voto, nos termos do art. 136, inciso IX, da Lei n. 6404. Veja-se:

"Art. 136. É necessária a aprovação de acionistas que representem metade, no mínimo, das ações com direito a voto, se maior quórum não for exigido pelo estatuto da companhia cujas ações não estejam admitidas à negociação em bolsa ou no mercado de balcão, para de-liberação sobre:

IX - cisão da companhia.

Daí a conclusão, tomada pelo voto-condutor do acórdão, de que o tra-tamento legal dispensado aos credores societários não se confunde com a proteção legal dos credores cíveis da sociedade parcialmente cindida. Leia-se (p. 21, do acórdão):

"Diante de todas as considerações até aqui tecidas, deve-se concluir que o tratamento legal dispensado aos credores societários não se confunde com a proteção legal atribuída aos credores cíveis da soci-edade parcialmente cindida. Enquanto para estes é imprescindível a verificação do protocolo de cisão e da relação patrimonial envolvida, a fim de se extrair a extensão do patrimônio transferido, naquele impõe tão somente a manutenção da proporção das ações ou a exis-tência de deliberação social específica e unânime em sentido diver-so."

No caso discutido pelo STJ, a obrigação examinada decorreu da con-denação da sociedade cindida ao pagamento de perdas e danos em razão de dife-renças acionárias na conversão de debêntures. As debêntures foram convertidas em ações, antes da cisão, por meio da aplicação de uma base de conversão - relação entre o valor nominal da debênture e o preço de emissão das ações - inferior à devida. Tratava-se, pois, de uma obrigação de caráter societário, eis que referente "ao quantitativo de ações correspondentes àquele debenturista a partir da opção para converter suas debêntures em proporção inferior àquela posteriormente reco-nhecida na sentença" (p. 22, do acórdão).

A diferença acionária na conversão das debêntures implicou, ao seu titular, o recebimento de ações da sociedade cindenda, no momento da cisão, em proporção inferior à devida. Veja-se (p. 22, do acórdão):

"Assim, se na origem as ações efetivamente emitidas e subscritas em favor daquele credor societário não refletiram a exata proporção de sua contribuição no incremento do capital social, essa desproporção foi perpetuada no momento da subscrição das ações corresponden-tes na empresa sucessora, a qual, por sua vez foi incorporada, man-tendo-se novamente a desproporção originária no quadro societário da recorrida.

Daí pela sucessiva extensão ou 'transferência' do benefício auferido aos demais sócios e sociedades envolvidos, em contraposição ao pre-juízo suportado individualmente pelo acionista em questão, é devido o reconhecimento de que as empresas sucessoras devem suportar a indenização na exata proporção do benefício, igualmente auferido. Por via de consequência, observando-se a proporção do patrimônio cindido recebido pela recorrida, é devida a ação de regresso para ressarcimento proporcional à recorrente".

A consequência, pois, dos diferentes limites legais à disciplina privada da transferência das obrigações de caráter civil e societário, é que o disposto no protocolo de justificação, relativamente às obrigações de caráter civil, não pode ser aplicado às de caráter societário.

No caso, assim, a previsão, na justificação, da transferência apenas das provisões de contingenciamento, não poderia afetar o direito dos sócios à subscri-ção das ações da cindenda, salvo por deliberação da unanimidade dos sócios, in-cluindo os sem direito a voto, nos termos do parágrafo 5º, do art. 229, da Lei n. 6404. Não tendo havido essa deliberação, parece correta a decisão tomada pelo STJ, devendo prevalecer a titularidade passiva da sociedade cindenda sobre a obrigação de caráter societário, na proporção do patrimônio cindido recebido.

A conclusão do acórdão, como já adiantado, foi pelo provimento do recurso especial, com o reconhecimento da procedência da ação de regresso ajui-zada pela sociedade cindida. O voto condutor do acórdão foi proferido pelo Ministro Marco Aurélio Belizze, e acompanhado pelos Ministros Paulo Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro.

 
Marcio Pedrosa Junior é advogado. Graduado em Direito pela UFMG; Pós-graduado em Direito Tributário pela Faculdade Milton Campos; Pós-graduado em Direito Tributário Internacional pelo IBDT.