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Limites para aplicação da pena de perdimento de mercadorias no contexto de estruturas de planejamento tributário internacional -
Gabriel Miranda Batisti*

Artigo - Federal - 2017/3622

A fiscalização e o controle do comércio exterior são atividades de grande importância para a administração pública, associadas ao exercício da soberania do país, ao ponto de serem classificadas pela própria Constituição Federal como essenciais aos interesses fazendários nacionais.[1]

O comércio exterior e o fluxo internacional de divisas são aspectos estratégicos da política econômica do país. Naturalmente, a proteção a esses "bens jurídicos" deve orientar a legislação e a atuação da Secretaria da Receita Federal ("Receita"), entidade responsável pela administração aduaneira no Brasil.

Os controles aduaneiros nacionais são bastante rígidos e até burocráticos. A legislação estabelece uma série de procedimentos e obrigações de caráter instrumental, concebidas com o objetivo de permitir que a fiscalização identifique, com clareza e precisão:

-Quem são as pessoas (partes) envolvidas na operação de comércio exterior;

-A origem dos recursos envolvidos;

-Qual o objeto (bens e mercadorias) da operação; e

-Qual o negócio jurídico que dá origem à operação.

A partir das declarações prestadas pelo interessado e dos documentos que instruem o despacho aduaneiro, a fiscalização deve avaliar a licitude de cada operação e a adequação dos procedimentos adotados pelas partes envolvidas, tanto em relação ao recolhimento dos tributos eventualmente incidentes, como ao atendimento de outras exigências regulatórias.

A adoção de procedimentos inadequados e a prestação de informações incorretas ou insuficientes às autoridades aduaneiras são exemplos de condutas tipificadas como infrações, passíveis de serem punidas com a imposição de sanções administrativas, pecuniárias e patrimoniais.[2] A todo rigor, a imposição de penalidades aduaneiras não afasta a exigência dos tributos e respectivos encargos (multa e juros) eventualmente devidos.[3]

Dentre as penalidades previstas na legislação aduaneira, a pena de perdimento pode ser considerada a mais gravosa. Em termos gerais, a pena de perdimento é aplicável em situações que denotam uma tentativa ou um intuito de burlar os controles aduaneiros. São hipóteses que, na ótica do legislador, representam grave ameaça aos bens jurídicos tutelados, especificamente, o controle e a fiscalização do comércio exterior e do fluxo internacional de divisas.

A pena de perdimento pode recair sobre moeda, veículos e mercadorias, e pode ser convertida em multa correspondente ao valor aduaneiro (na importação) ou ao preço das mercadorias (na exportação) quando não forem localizadas ou tiverem sido consumidas ou revendidas.[4]

O perdimento de mercadorias, objeto deste estudo, é aplicável nas hipóteses previstas no art. 105 do Decreto-lei n. 37/66 ("DL 37/66") e no art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76 ("DL 1.455/76"), consolidadas no art. 689 do Decreto n. 6.759/09 ("Regulamento Aduaneiro"). Algumas dessas normas descrevem situações específicas, como a da mercadoria estrangeira acondicionada sob fundo falso.[5] Outras, porém, possuem redação baseada em conceitos subjetivos, que podem alcançar uma ampla gama de situações, a depender da interpretação adotada pela autoridade competente.

A esse respeito, merecem destaque as hipóteses dos incisos VI e XI do art. 105 do DL 37/66 e do art. 23, V e § 1º do DL n. 1.455/76:

Decreto-lei n. 37/66"Art.105 - Aplica-se a pena de perda da mercadoria:

(...)

VI - estrangeira ou nacional, na importação ou na exportação, se qualquer documento necessário ao seu embarque ou desembaraço tiver sido falsificado ou adulterado;

(...)

XI - estrangeira, já desembaraçada e cujos tributos aduaneiros tenham sido pagos apenas em parte, mediante artifício doloso."

Decreto-lei n. 1.455/76

"Art 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias:
(...)
V - estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros. (Incluído pela Lei nº 10.637, de 30.12.2002)

(...)

§ 1º O dano ao erário decorrente das infrações previstas no caput deste artigo será punido com a pena de perdimento das mercadorias. (Incluído pela Lei nº 10.637, de 30.12.2002)

§ 2º Presume-se interposição fraudulenta na operação de comércio exterior a não-comprovação da origem, disponibilidade e transferência dos recursos empregados." (Incluído pela Lei nº 10.637, de 30.12.2002)

Os dispositivos reproduzidos acima vêm sendo utilizados pela fiscalização aduaneira como fundamento para a imposição da pena de perdimento (ou da multa substitutiva) em uma ampla gama de situações.

É comum a aplicação da penalidade em situações nas quais as autoridades identificam divergências ou falta de transparência com relação (i) ao destino das mercadorias, (ii) às partes envolvidas, (iii) a origem e a destinação dos recursos financeiros e (iv) à natureza do negócio jurídico subjacente. Adicionalmente, a imposição da penalidade é ainda mais provável caso se verifique que essas "irregularidades" ou "indícios de irregularidades" estejam associados a uma redução de carga tributária.

Apesar da gravidade da sanção, a imposição da pena de perdimento é uma medida bastante comum e que vem se disseminando no âmbito da administração aduaneira.

O que se observa na prática é que a fiscalização aduaneira vem adotando uma postura rígida e restritiva quanto ao alcance dos institutos jurídicos tipificados nas hipóteses de perdimento, postura essa que é incentivada pela própria burocracia aduaneira, dando causa a uma interpretação distorcida dos dispositivos transcritos acima, que embasa a aplicação da penalidade em situações cada vez mais abrangentes.

Veja-se que as normas previstas nos incisos VI e XI do art. 105 do DL 37/66 e do art. 23, V e § 1º do DL n. 1.455/76 possuem uma conotação criminal e autorizam a aplicação da pena de perdimento apenas quando restar caracterizado o "elemento subjetivo do tipo".

A norma do inciso VI, art. 105 do DL 37/66 exige a demonstração da efetiva falsificação ou adulteração dos documentos que instruem a operação. A norma do inciso XI exige a demonstração de que a redução dos tributos se deu por meio de um artifício doloso. Já a norma do inciso V, art. 23 do DL 1.455/76 exige que a ocultação da parte envolvida tenha sido realizada mediante fraude ou simulação.

A despeito disso, a pena de perdimento vem sendo imposta em situações em que o Fisco não demonstra com propriedade a caracterização dos "elementos subjetivos" - falsificação ou adulteração de documentos, fraude, simulação e artifício doloso. Em determinados casos, a fiscalização sustenta que o "elemento subjetivo" restaria configurado em virtude de erros no preenchimento de declarações ou da existência de negócios previamente acordados envolvendo a mercadoria importada.

Essa postura deve ser vista com ressalvas e com cautela. O Superior Tribunal de Justiça ("STJ") já manifestou o entendimento de que a pena de perdimento, "ainda que não se confunda tecnicamente com o confisco, é dele indiscernível da perspectiva do sujeito passivo, tratando-se de razão suficiente para restringir a incidência da penalidade apenas às hipóteses em que a subsunção do fato à norma seja perfeita."[6]

Por outro lado, a relativização dos "elementos subjetivos" dos referidos tipos infracionais pode provocar uma temerária generalização da aplicação da pena de perdimento, com risco de servir de fundamento para a imposição indevida da sanção em operações de comércio exterior realizadas no contexto de uma estrutura de planejamento tributário internacional perfeitamente lícita.

A título ilustrativo, imagine-se o exemplo de um grupo multinacional com filial no Brasil, que constitui uma trading company em jurisdição estratégica para operar a compra e venda de produtos do grupo com parceiros comerciais de diversos países.

A trading company adquire e revende produtos fabricados pela filial do grupo estabelecida no Brasil, respeitando as regras de preços de transferência e demais obrigações fiscais, e revende os produtos para uma terceira empresa situada em outro país. As mercadorias produzidas no Brasil não transitam pelo país em que localizada a trading company e são entregues diretamente no local indicado pelo terceiro adquirente.

Uma interpretação que relativiza os "elementos subjetivos" dos tipos infracionais previstos no art. 105, VI e XI do DL 37/66 e no art. 23, V do DL 1.455/76 poderia conduzir à imposição indevida da pena de perdimento, ou a multa substitutiva, mesmo que o exportador brasileiro observe todos os deveres instrumentais e obrigações tributárias previstos na legislação. No limite, o Fisco poderia argumentar que o real adquirente das mercadorias seria o terceiro, e não à trading company vinculada ao exportador. Diante disso, poderia sustentar que a operação seria simulada e que os documentos seriam falsificados.

Na hipótese de uma estrutura que gerasse eficiência tributária nas importações, o Fisco poderia sustentar que o planejamento tributário do grupo multinacional seria um artifício doloso utilizado para a redução de tributos.

Obviamente, os exemplos mencionados acima são bastante simplistas e as situações que se apresentam na prática são muito mais complexas e desafiadoras. De qualquer sorte, o que se pretende enfatizar a partir desses exemplos é a importância de que a fiscalização aduaneira e os tribunais avaliem com cautela e rigor a caracterização dos elementos subjetivos dos tipos infracionais puníveis com a pena de perdimento.

É descabida e desproporcional a imposição da pena de perdimento com o intuito de questionar uma operação realizada no contexto de uma estrutura de planejamento tributário.

As normas do art. 105 do DL 37/66 e do art. 23, do DL 1.455/76 são claras e enfáticas ao restringir a imposição da pena de perdimento às hipóteses que é evidente o "elemento subjetivo" que denota a tentativa ou o intuito de burlar os controles aduaneiros.

Sob a perspectiva de uma interpretação sistemática e teleológica, o objetivo dessas normas não é o de inviabilizar estruturas de planejamento tributário, mas sim, de combater fraudes contra o controle aduaneiro, a evasão tributária e de divisas.

Em outras palavras, a pena de perdimento deve ser imposta apenas nas hipóteses em que reste devidamente configurada uma conduta ilícita, com características de infração penal, como a falsidade ideológica ou material (art. 105, VI do DL 37/66), o descaminho (art. 105, XI do DL 37/66) e outras condutas fraudulentas no comércio exterior (art. 23, V do DL 1.455/76).

A "banalização" da pena de perdimento e a sua imposição em situações não dolosas esvazia os objetivos da norma, de proteger o controle aduaneiro e de divisas, e pode provocar um efeito adverso, de prejudicar o fluxo e o desenvolvimento do comércio exterior.

Há que se ressaltar que a própria legislação aduaneira prevê sanções mais brandas para determinadas condutas, como a prestação de informações insuficientes ou incompletas, erros no preenchimento de declarações, entre outras. Sob a luz do art. 112 do Código Tributário Nacional ("CTN")[7] e demais princípios que regem o ordenamento jurídico, em um concurso de penalidades dessa natureza, deve prevalecer a mais branda. Esse foi o entendimento do STJ no julgamento do Recurso Especial n. 1.218.798 - PR[8], cuja ementa foi redigida nos seguintes termos:

"TRIBUTÁRIO. DIREITO ADUANEIRO. DECLARAÇÃO DE IMPORTAÇÃO. SUBFATURAMENTO DO VALOR DA MERCADORIA. PENA DE PERDIMENTO. DESCABIMENTO. APLICAÇÃO DA MULTA PREVISTA NO ART. 108, PARÁGRAFO ÚNICO, DO DECRETO-LEI Nº 37/66. CRITÉRIO DA ESPECIALIDADE DA NORMA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. CONSIDERAÇÃO.
1. A falsidade ideológica consistente no subfaturamento do valor da mercadoria na declaração de importação dá ensejo à aplicação da multa prevista no art. 105 (sic), parágrafo único, do Decreto-Lei nº 37/66, que equivale a 100% do valor do bem, e não à pena de perdimento do art. 105, VI, daquele mesmo diploma legal.
2. Interpretação harmônica com o art. 112, IV, do CTN, bem como com os princípios da especialidade da norma, da razoabilidade e da proporcionalidade. Precedentes.
3. Recurso especial da Fazenda Nacional a que se nega provimento."

Por sua vez, a legitimidade de estruturas de planejamento tributário pode ser questionada ou discutida sob o viés estritamente tributário. Caso o Fisco entenda que o planejamento adotado proporciona economia tributária indevida, pode discutir a legitimidade do planejamento com base nos tributos controversos.

Seguindo essa linha de interpretação, não parece razoável que, a partir de uma interpretação que relativiza os "elementos subjetivos" dos tipos infracionais puníveis com a pena de perdimento, o Fisco venha a impor multas graves ao contribuinte, que decorrem, na realidade, de uma insurgência contra o planejamento adotado pela empresa.

Em vista dessas ponderações, é possível sustentar que a pena de perdimento não deve ser utilizada pela Receita como uma "ferramenta" para questionar operações realizadas no contexto de uma estrutura lícita de planejamento tributário. A imposição da penalidade deve ser limitada, portanto, às situações em que a conduta da(s) parte(s) envolvida na operação de comércio exterior configure fraude ou ato ilícito de feição criminal, tendente a burlar os controles aduaneiros.

[1] Art. 237.

[2] A título de exemplo, vide arts. 106 a 108 do DL 37/66.

[3] A título ilustrativo, vide arts. 684 e 707 do Regulamento Aduaneiro.

[4] Art. 23, § 3º do Decreto-lei n. 1.455/76, na redação dada pela Lei n. 12.350/2010.

[5] Art. 105, XVIII do Decreto-lei n. 37/66.

[6] AgRg no Agravo em Recurso Especial n. 223.660 - SP, Rel. Min Napoleão Nunes Maia Filho, DJ-e 10.11.2015.

[7] Lei n. 5.172/66.

[8] Rel. Min. Sérgio Kukina, DJ-e 01.10.2015.

 
Gabriel Miranda Batist é advogado em São Pauloi