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Tribunal de impostos e taxas cancela auto de infração por reconhecer a boa-fé do vendedor em operação FOB - Gabriel Miranda Batisti*

Artigo - Estadual - 2017/0530

Em decisão publicada no dia 02.08.2017, a Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas ("TIT") manteve decisão proferida pela Sétima Câmara Julgadora, que, por reconhecer a boa-fé do contribuinte vendedor, cancelou um Auto de Infração e Imposição de Multa ("AIIM")[1] lavrado mediante a acusação de emissão de documento fiscal consignando declaração falsa quanto ao estabelecimento adquirente das mercadorias.

O precedente em referência indica uma possível e aguardada evolução na jurisprudência do Tribunal em relação a matéria de fundo da autuação, que se refere a atribuição de responsabilidade por infrações praticadas em operações nas quais o transporte das mercadorias é feito por conta e risco do adquirente ("venda FOB").

No Estado de São Paulo, as discussões envolvendo a matéria são comuns, norteadas pelos artigos 22-A e 23, § 3º da Lei n. 6.374/89, que obrigam os contribuintes a comprovar a regularidade fiscal de seus clientes e fornecedores[2], assim como o destino da mercadoria em operações interestaduais ou com destino a exportação[3].

A partir desses dispositivos, o Fisco pode atribuir ao contribuinte vendedor a responsabilidade por irregularidades relativas à destinação das mercadorias, mesmo nas hipóteses em que não tenha ingerência ou responsabilidade sobre o transporte, como nos casos de "venda FOB".

Nessas hipóteses, o Fisco sustenta que a operação não ocorreu na forma retratada nos documentos fiscais e exige o recolhimento do ICMS como se a "operação real" fosse interna e tributada, descaracterizando a operação interestadual (alíquota menor) ou mesmo uma eventual imunidade ou isenção. Adicionalmente, também são impostas penalidades em razão do preenchimento incorreto do documento fiscal.

Ao longo dos anos, consolidou-se na jurisprudência do TIT uma interpretação restritiva dos artigos 22-A e 23, § 3º da Lei n. 6.374/89, segundo a qual, a responsabilidade do vendedor por irregularidades quanto à destinação da mercadoria em uma operação "FOB", somente seria afastada com a comprovação da correspondência entre o destino efetivo da mercadoria e o destino/destinatário consignado no documento fiscal.

Essa interpretação se apoiava, ainda, no entendimento manifestado em decisões do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), no sentido de que a cláusula FOB não afastaria a responsabilidade tributária do vendedor, caso as mercadorias não fossem efetivamente entregues no destino.[4]

Nos últimos anos, porém, o cenário jurisprudencial que envolve a matéria vem se alterando.

O STJ consolidou o entendimento que autoriza o comerciante de boa-fé a aproveitar créditos do ICMS destacados em notas fiscais posteriormente declaradas inidôneas, desde que comprovada a veracidade da operação de compra e venda.

A partir da decisão proferida no RESP n. 1.148.444-MG[5], que culminou na edição da Súmula 509[6], o STJ passou a privilegiar a boa-fé em discussões relacionadas a atribuição de responsabilidade tributária, em detrimento da responsabilização objetiva do contribuinte por infrações praticadas por terceiros, inclusive em casos que discutiam a responsabilidade tributária do vendedor de boa-fé.

No julgamento do RESP 1.305.856-SP, o STJ manifestou o entendimento de que o vendedor de boa-fé não poderia ser responsabilizado (objetivamente) por eventuais desvios na destinação de mercadoria em operação interestadual, sendo vedada a atribuição de responsabilidade objetiva com fundamento no artigo 136 do Código Tributário Nacional[7] ("CTN")[8].

Nesse contexto, a decisão proferida pela Sétima Câmara Julgadora do TIT e mantida pela Câmara Superior merece destaque, justamente por incorporar à jurisprudência do tribunal administrativo o entendimento do STJ de que a demonstração da boa-fé do contribuinte deve afastar a sua responsabilidade por desvios praticados por terceiros, também nos casos que envolvem "venda FOB".

No precedente ora analisado, o contribuinte realizou a venda de papel, em operações imunes ou tributadas pelo ICMS, para uma empresa que posteriormente teve a inscrição estadual anulada pelo Fisco, com efeitos retroativos, em razão da constatação de inexistência (simulação) do estabelecimento.

Diante das irregularidades apuradas em relação ao adquirente das mercadorias, o Fisco lavrou o AIIM exigindo o recolhimento do ICMS em relação às operações que haviam sido tratadas como imunes, além de multa pelo preenchimento irregular dos documentos fiscais.

O contribuinte contestou a autuação sustentando, em síntese, que teria agido de boa-fé, verificado a regularidade do adquirente perante o Fisco à época das operações, e, por esses motivos, não poderia ser responsabilizado por irregularidades ou desvios eventualmente praticados por terceiros.

O contribuinte instruiu sua defesa com os documentos societários e certidões cadastrais que apontavam a regularidade do adquirente e lhe autorizavam a adquirir papel imune à época das operações[9]. Adicionalmente, apresentou também os extratos bancários que comprovariam o pagamento das operações.

A acusação fiscal foi julgada procedente na primeira instância administrativa, e submetida à apreciação da Sétima Câmara Julgadora do TIT.

No julgamento em segunda instância, prevaleceu o entendimento de que a orientação conferida pela Súmula 509 do STJ (RESP n. 1.148.444-MG) deve ser aplicada também aos casos em que a inidoneidade se refere ao destinatário/adquirente da mercadoria, afastando a responsabilidade do vendedor de boa-fé pelas infrações cometidas por terceiros.

Reconhecida a aplicabilidade da tese jurídica ao caso concreto, a Sétima Câmara Julgadora entendeu que os documentos apresentados pelo contribuinte demonstrariam a sua boa-fé, e afastariam a sua responsabilidade pela infração, determinando, assim, o cancelamento do AIIM.

Contra essa decisão, a Fazenda Pública interpôs recurso especial pleiteando a sua reforma e a manutenção integral da exigência fiscal.

No entanto, por maioria de votos (9 x 7), a Câmara Superior deixou de conhecer do recurso fazendário por entender, em síntese, que a decisão proferida pela Sétima Câmara Julgadora se baseou na análise do conjunto probatório dos autos, cuja reanálise é vedada em sede de recurso especial.

Embora o precedente em referência não permita afirmar a existência de um entendimento sedimentado no TIT, ele representa um passo importante para a adequação da jurisprudência do tribunal ao cenário que vem se consolidando no STJ, e também às próprias normas de atribuição de responsabilidade tributária previstas no CTN.

Com efeito, a legislação que dá suporte às autuações que envolvem "vendas FOB" foi concebida com o objetivo de proteger o erário público de esquemas criminosos, que se utilizam de empresas de fachada para sonegar tributos.

Contudo, se não forem interpretadas de maneira sistemática e harmônica com o restante do ordenamento jurídico, essas normas podem ser utilizadas como fundamento para exigências fiscais indevidas e atentatórias aos direitos e garantias assegurados aos contribuintes.

Ainda que se admita que os contribuintes devam se atentar para a idoneidade de seus clientes e fornecedores, a obrigação de verificar a regularidade fiscal desses terceiros deve ser ponderada e sopesada a partir de critérios razoáveis, condizentes com a estrutura e os meios de obtenção de informações fiscais disponibilizados aos particulares, visto que o contribuinte não detém poder polícia, nem, muito menos, os instrumentos e a capacidade fiscalizatória do Estado.

Não é razoável, no contexto de uma "venda FOB" - modalidade contratual legítima e incorporada à legislação do ICMS[10] - se exigir que o contribuinte fiscalize o transporte e a entrega da mercadoria ao destinatário, especialmente se esse estiver localizado em outro Estado.

Por outro lado, cabe ao Fisco a responsabilidade de desenvolver mecanismos e procedimentos eficazes para prevenir a criação, manutenção e a proliferação de empresas de fachada, não obstante as notórias dificuldades enfrentadas na prática.

Nesse ponto, é importante ressaltar que a própria Secretaria da Fazenda extinguiu, desde 01.04.2004, os postos fiscais que faziam o controle de fronteiras do Estado.[11]

Não parece razoável que um contribuinte de boa-fé, em posse de documentos que atestam a regularidade fiscal do contratante no momento da operação, seja punido posteriormente por eventuais desvios cometidos pelo terceiro posteriormente declarado inidôneo pelo Fisco.

Em vista disso, a legislação estadual deve ser interpretada à luz dos princípios da boa-fé, da moralidade, e demais princípios que regem o relacionamento entre os particulares e a administração pública.

O que não se pode permitir é que as regras antiabuso previstas nos artigos 22-A e 23, § 3º da Lei n. 6.374/89 sirvam de fundamento para a manutenção de autuações que pretendam atribuir a um contribuinte - como o vendedor em "operações FOB" - a responsabilidade por tributos ou penalidades eventualmente devidas em decorrência de infrações ou desvios cometidos por terceiros, sem que se avalie criteriosamente as circunstâncias da autuação e a boa-fé do contribuinte vendedor.

Do contrário, o efeito prático dessas normas seria a criação de uma regra de atribuição de responsabilidade tributária não contemplada pelo CTN, e contrária ao disposto em seus artigos 135 e 137, que estabelecem a responsabilidade pessoal do agente por infrações tributárias.[12]

No limite, se as normas em referência não forem interpretadas de maneira sistêmica, em observância ao princípio da boa-fé (e outros), o seu efeito prático seria a instituição de uma presunção absoluta de conluio entre o vendedor e o adquirente da mercadoria, que afrontaria garantias constitucionais fundamentais, como o direito ao contraditório, ampla-defesa, verdade material, entre tantos outros.

Por esses motivos, o entendimento consolidado na Súmula 509 do STJ deve orientar também as discussões envolvendo "vendas FOB".

Com efeito, a discussão relativa ao aproveitamento de créditos de ICMS na aquisição de mercadorias junto a fornecedor posteriormente declarado inidôneo corresponde, em regra, ao "outro lado da moeda" das discussões relativas às "vendas FOB". Enquanto nas autuações que discutem o direito a crédito, o fornecedor é posteriormente considerado inidôneo, nas "vendas FOB", a "inidoneidade" posterior se refere ao adquirente da mercadoria.

Nesse sentido, espera-se que o TIT se atente para essas questões e, assim como feito em relação às autuações que discutem o direito ao aproveitamento de créditos do ICMS nas aquisições de mercadorias de fornecedores posteriormente declarados inidôneos, consolide em sua jurisprudência o entendimento que preza pela análise da boa-fé do contribuinte, também nas autuações envolvendo "vendas FOB".

Além de aceitar a boa-fé como fator impeditivo da responsabilização do contribuinte por infrações cometidas por terceiros, é importante que o TIT defina, assim como feito nos casos de crédito indevido, critérios plausíveis e provas razoáveis para se reconhecer a boa-fé, conferindo, assim, maior segurança jurídica ao Estado e aos contribuintes.

[1] AIIM n. 4.070.486-5.

[2] Art. 22-A da Lei n. 6.374/89:

Artigo 22-A - Sempre que um contribuinte, por si ou seus prepostos, ajustar a realização de operação ou prestação com outro contribuinte, fica obrigado a comprovar a sua regularidade perante o fisco, de acordo com o item 4, do § 1º, do artigo 36, e também a exigir o mesmo procedimento da outra parte, quer esta figure como remetente da mercadoria ou prestador do serviço, quer como destinatário ou tomador, respectivamente.

[3] Art. 23, § 3º da Lei n. 6.374/89:

§ 3º - Presume-se interna a operação quando o contribuinte não comprovar a saída da mercadoria do território paulista com destino a outro Estado ou ao Distrito Federal, ou a sua efetiva exportação.

[4] A ilustrar esse entendimento, merece destaque a decisão proferida nos EDCL no RESP 37.033-SP, julgado em 15.09.1998.

[5] Decisão publicada em 27.04.2010.

[6] Súmula 509 do STJ: "É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda".

[7] Lei n. 5.172/66.

[8] Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.

[9] A legislação exige que as empresas que realizam operações com papel imune estejam inscritas no Registro Especial instituído pela Lei nº 11.945/2009 e regulamentadas pela Instrução Normativa RFB nº 976/2009.

[10] Vide, por exemplo, o disposto no artigo 15, II e III da Lei Complementar n. 78/96.

[11] Portaria CAT n. 20/2004.

[12] Art. 137. A responsabilidade é pessoal ao agente:

I - quanto às infrações conceituadas por lei como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por quem de direito;

II - quanto às infrações em cuja definição o dolo específico do agente seja elementar;

III - quanto às infrações que decorram direta e exclusivamente de dolo específico:
a) das pessoas referidas no artigo 134, contra aquelas por quem respondem;
b) dos mandatários, prepostos ou empregados, contra seus mandantes, preponentes ou empregadores;
c) dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado, contra estas.

 
Gabriel Miranda Batisti