Decisoes.com.br - Jurisprudência Administrativa e Judiciária, Decisões de dezenas de Tribunais, STF, STJ, TRF, TIT, Conselhos de Contribuintes, etc.
Usuários
Lembrar usuário
Lembrar senha

Pesquisar em
Doutrina
Boletins
Todas as Áreas
Áreas Específicas
Tribunais e Órgãos abrangidos
Repercussão Geral (STF)
Recursos Repetitivos (STJ)
Súmulas (STF)
Súmulas (STJ)
Matérias Relevantes em Julgamento


Localizar nessa página:   
 

Multa de ofício qualificada e Crimes contra a ordem tributária - Fernando Barboza Dias*
Fernando Barboza Dias*

Artigo - Federal - 2017/3585

Ao identificarem a prática de infrações tributárias, a Receita Federal do Brasil e os órgãos estaduais e municipais de administração tributária devem aplicar multas proporcionais à gravidade dos ilícitos constatados. Nesse sentido, a Lei 9.430/1994 estabelece multas de 50%, ou 75%, para infrações menos graves, e multas até 150% para casos mais sérios. A questão que se apresenta é em que medida a aplicação da mais grave das multas, a chamada multa de ofício qualificada, deve necessariamente conduzir a uma persecução penal e quais os efeitos que essa multa traz para o procedimento criminal.

A relação entre a multa de ofício qualificada e direito penal foi abordada no artigo "De multa qualificada à multa empalhada", escrito pelos Procuradores da Fazenda Nacional Fernanda Regina Vilares e James Siqueira [1], embora não sob o enfoque ora tratado. Além disso, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça [2], bem como as 11ª e 2ª Turmas do Tribunal Regional Federal já enfrentaram ao menos a segunda questão acima delimitada [3]. Assim, o tema merece maior debate, especialmente diante dos casos em que se aplica multa de ofício qualificada para planejamentos tributários, os quais terminam sendo investigados criminalmente [4].

A multa de ofício qualificada no percentual de 150%, cuja constitucionalidade é inclusive discutida no Recurso Extraordinário 736.090 [5], possui cabimento quando o contribuinte não só falta com o pagamento ou recolhimento, com a declaração de lançamento ou presta declaração inexata. Essas irregularidades justificam multa no percentual de apenas 75% (artigo 44, inciso I, da Lei 9.430/1994).

A multa qualificada se aplica quando quaisquer dessas irregularidades é acompanhada de quaisquer dos ilícitos previstos nos artigos 71 ou 72, da Lei 4.502/1964 [6]. Isto é, o contribuinte deve cometer atos para impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, sua natureza ou circunstâncias materiais (inciso I, artigo 71), ou de suas condições pessoais, que podem afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário (inciso II, artigo 71). Ou, ainda, comete fraude assim definida no artigo 72, também com o objetivo de impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, ou excluir as suas características essenciais, reduzindo o montante devido e assim evitando ou diferindo seu pagamento.

Todas essas hipóteses são próximas ao menos dos incisos I a IV, do artigo 1º, da Lei 8.137/1990 [7], as quais ensejam a formalização de representação fiscal para fins penais, nos termos do artigo 1º, da Portaria RFB nº 2.439/2010. Existe, portanto, certa coincidência entre as hipóteses de multa de ofício qualificada e aquelas em que o Auditor da Receita Federal deve formalizar a representação fiscal para fins penais. A questão é se aplicada uma medida (multa qualificada), deve o fiscal necessariamente formalizar a outra.

Para a lavratura da multa qualificada, o Auditor deve identificar as hipóteses do artigo 71 e 72 tanto quanto ele identificaria a existência em tese de algum dos crimes contra a ordem tributária previstos nos incisos I a IV do artigo 1º, da Lei 8.137/1990. Como afirmado, as duas realidades se aproximam substancialmente. Difícil imaginar um caso em que o Auditor identifica um dos casos daqueles dois artigos, mas não identifica ao mesmo tempo um possível crime contra a ordem tributária. Daí que aplicada a multa, também em regra se deve formalizar a representação.

No entanto, caso a validade da multa venha a cessar, em que medida a representação deve continuar a valer? Não existe uma relação de principal e acessório entre as duas medidas, mas por certo existe ao mínimo uma conexão lógica entre esses dois atos jurídicos. Apesar disso, a Portaria RFB nº 2.439/2010 dispõe que a representação fiscal para fins penais, a qual somente será enviada ao Ministério Público Federal ao final do processo administrativo [8], deixará de ter validade apenas e somente no caso de o crédito tributário ser extinto em meio ao processo de impugnação administrativa, quitado ou integralmente pago o parcelamento [9] (artigo 4º, § 4º, da Portaria RFB nº 2.439/2010). A normativa não discorre sobre os efeitos do afastamento da multa qualificada ao longo do processo administrativo, e em tese parece deixar a questão aberta para o intérprete.

Na realidade, a questão não se encontra em aberto e, curiosamente, a resposta para essa questão provem do próprio ato normativo do qual a referida portaria retira validade, em que pese a portaria não disponha em iguais termos. É que O Decreto n. 2.730/1998 estabelece expressamente que a representação fiscal será enviada ao Ministério Público Federal se mantida a imputação da multa agravada e o crédito de tributos e contribuições não for extinto pelo pagamento (artigo 2º, inciso I).

Com efeito, a disposição acima destaca parece bastante coerente com a conclusão de que a decisão de um órgão administrativamente superior ao Auditor da Receita Federal lavrador da multa deveria invalidar também a representação fiscal para fins penais. Afinal, uma vez anulada a multa, conclui-se inexistir lastro para a afirmação do próprio Auditor quanto à existência das hipóteses dos artigos 71 ou 72, da Lei 4.502/1964. Por via reflexa, também deveria se anular o entendimento do Auditor quanto a existência de eventuais crimes contra a ordem tributária, pois uma realidade parece indissociável da outra. Do contrário, o que se tem é o início de investigação criminal por suposta fraude tributária que as próprias autoridades fiscais julgadoras consideraram não possuir embasamento e por isso cancelaram a multa de ofício qualificada.

Existem duas súmulas do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais dispondo expressamente que a multa de ofício qualificada somente se mantém mediante a comprovação do evidente intuito fraudulento do sujeito passivo (Súmulas n. 14 e 25), o que equivale a dizer que a comprovação desse intuito poderá ser discutida na via administrativa a fim de se verificar se os elementos de prova existentes satisfazem esse requisito. Nessa ordem de ideias, como o fato criminoso deve ser antijurídico, caso a autoridade fiscal julgadora declare que a suposta fraude a embasar a multa não existe, o juízo de antijuridicidade estará fatalmente prejudicado. Essa deve ser a posição de todos aqueles que defendem haver uma interdependência entre as esferas criminal e administrativa. Porém, se a decisão for no sentido de haver ausência de provas da fraude, parece permanecer havendo espaço para a continuidade da representação fiscal para fins penais [10].

Na defesa da independência entre a multa de ofício qualificada e a representação fiscal para fins penais, pode-se alegar que, ao formalizar essa representação, o Auditor fiscal nada mais está a exercer um direito, que pertence a qualquer "pessoa do povo", de comunicar a existência de possível infração penal da qual tomou conhecimento para a autoridade policial competente (artigo 5º, § 3º, do Código de Processo Penal). No entanto, esse argumento não procede, pois a representação fiscal segue rito e formas previstas em lei, e seu não cumprimento pode implicar sanções para o Auditor da Receita Federal - o que termina por ser um grande estímulo para a lavratura de representações (artigo 8º, da Portaria RFB nº 2.439/2010). Não se trata do exercício de um direito que assiste a qualquer pessoa, mas de uma obrigação funcional, submetida a regramento administrativo.

Feitas essas considerações, as conclusões desse artigo são que as hipóteses de multa de ofício qualificada e representação fiscal para fins penais são substancialmente similares, bem ainda que, anulada a primeira ao final da impugnação administrativa, a validade da segunda deveria ser reavaliada pelas autoridades fiscais, a fim de se evitar procedimentos juridicamente contraditórios.

[1] Vilares, Fernanda Regina. Siqueira, James. De multa qualificada à multa empalhada. 17/4/2017. https://jota.info/colunas/contraditorio/de-multa-qualificada-a-multa-empalhada-17042017

[2] Tratou-se do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 25.873/RS, julgado sob relatoria do Ministro Jorge Mussi, em 16/06/2011, com acórdão disponibilizado em 01/08/2011. Segundo a ementa desse julgado, "conquanto a autoridade administrativa tenha afastado a aplicação da multa qualificada de 150% à contribuinte, ora recorrente, o certo é que tal decisão deveu-se unicamente à inexistência de comprovação, por parte da fiscalização tributária, de que ela teria agido com dolo, ou seja, não se afirmou que no caso a fraude fiscal não teria sido intencional, mas sim que não se teria provado, por meio de documentação, tal circunstância."

[3] Na 11ª Turma, o feito em que houve análise desse argumento se cuidou da Apelação Criminal n. 0000374-44.2007.4.03.6113, cuja relatoria coube ao Exmo. Des. Fed. Nino Toldo (acórdão disponibilizado em 06/06/2017). Na 2ª Turma, tratou-se de habeas corpus de relatoria do Exmo. Des. Fed. Cotrim Guimarães (HC 2011.03.00.012701-9, acórdão publicado em 08/09/2011). Seguem trechos da ementa desse segundo julgado: "(...) I - Tendo em vista a independência entre as esferas administrativa e penal, o Ministério Público não está atrelado à Representação Fiscal para Fins Penais a ele encaminhada pela Receita Federal, devendo oferecer denúncia caso verifique presentes indícios de autoria e materialidade delitivas, haja vista o princípio institucional da independência funcional do Ministério Público (artigo 127, § 1º, CF). II - Assim, a representação fiscal para fins penais se afigura apenas como uma das maneiras pelas quais pode haver a noticia criminis e não como condição de procedibilidade da ação penal dos crimes contra a ordem tributária. III - Independentemente do percentual da multa aplicada (75% ou 150%), restou configurado em âmbito administrativo, ao menos em tese, a prática de conduta delituosa (crime contra a ordem tributária). IV - Ora, o tipo penal descrito no artigo 1º da Lei nº 8.137/90 não exige o dolo específico ou especial fim de agir, bastando apenas que o agente preste declarações falsas às autoridades fazendárias, independentemente do motivo. V - Por outro lado, na multa qualificada, prevista no artigo 44, II, da Lei nº 9.430/96 , em sua antiga redação, o intuito de fraude exigido era requisito apenas da própria multa, na esfera administrativo-tributária. Assim, o afastamento da multa qualificada é irrelevante para fins penais. VI - Ordem denegada. (HC 2011.03.00.012701-9, DESEMBARGADOR FEDERAL COTRIM GUIMARÃES, TRF3 - SEGUNDA TURMA, DJF3 CJ1 DATA:08/09/2011 PÁGINA: 223.

[4] As diferenças entre o mero propósito negocial que o fisco qualifica certos planejamentos tributários e crimes contra a ordem tributária foram discutidas no artigo Propósito negocial e crimes contra a ordem tributária, escrito por Pedro Sandrin Marco Aurélio de Carvalho, datado de 26 de junho de 2017 (https://www.jota.info/artigos/proposito-negocial-e-crimes-contra-a-ordem-tributaria-26062017)

[5] Repercussão geral reconhecida conforme acórdão publicado em 27 de novembro de 2015, Relatoria do Min. Luiz Fux.

[6] O artigo 73 trata apenas de expressar que essas infrações também podem ocorrer mediante a ação ou omissão dolosa de duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas com vistas a prática dos infrações previstas nos artigos 71 ou 72, da mesma lei.

[7] Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; (...) Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

[8] Artigo 83, da Lei 9.430/1994, Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal, e artigo 4º, § 4º, da Portaria RFB nº 2.439/2010.

[9] § 4º Os autos da representação fiscal, juntamente com cópia da respectiva decisão administrativa, deverão ser arquivados na hipótese de o correspondente crédito tributário ser extinto pelo julgamento administrativo, pelo pagamento ou pela quitação do parcelamento.

[10] As mesmas conclusões valem se a multa de ofício qualificada for afastada por decisão judicial.

 
Fernando Barboza Dias