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STJ reconhece a impossibilidade da tutela jurisdicional coletiva dos consumidores de fundos de renda fixa
Márcio Pedrosa Junior*

Artigo - Federal - 2017/3556

Em acórdão publicado no dia 7.12.2016, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"), reconheceu a inadequação da ação civil pública para a tutela dos direitos dos consumidores-cotistas dos fundos de investimento de renda fixa (Recurso Especial n. 865.493 - PR). O entendimento acolhido pelo órgão julgador, por maioria, na esteira do voto proferido pela Ministra Isabel Gallotti, foi o de que os direitos individuais dos investidores dos fundos de renda fixa não seriam dotados de homogeneidade, não sendo, pois, passíveis de serem protegidos pela via da ação coletiva.

No caso, uma associação de defesa dos interesses dos consumidores ajuizou ação civil pública contra uma instituição financeira, alegando que a mesma teria omitido informações e se utilizado de propaganda enganosa a fim de induzir os seus clientes a aportar recursos em fundos de renda fixa por ela administrados, sem dar-lhes a conhecer os riscos envolvidos nesse tipo de investimento. Esse procedimento teria causado prejuízos à coletividade dos investidores, cuja reparação fora precisamente o objeto da ação coletiva ajuizada pela associação.

Em primeira instância, o processo foi extinto, sem julgamento do mérito, tendo o MM. Juízo reconhecido a ilegitimidade ativa da associação autora, por falta de observância do requisito temporal do art. 82, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor ("CDC"), que exige o tempo mínimo de um ano de constituição, à data da propositura da ação, para a legitimação extraordinária da associação. O MM. Juízo entendeu, também, não estar presente no caso a hipótese de dispensa do requisito temporal prevista no parágrafo 1º, do art. 82, do CDC, i.e., a existência de "manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou características do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido".

A sentença foi confirmada em sede de apelação, dando ensejo ao recurso especial interposto pela autora. A questão principal posta a julgamento era a de se havia, no caso, um "manifesto interesse social", a dispensar o requisito temporal de constituição ânua da associação.

Nos termos do parágrafo 1º, do art. 82, do CDC, o manifesto interesse social que permite a dispensa do requisito temporal é evidenciado pela "dimensão ou característica do dano", ou, pela "relevância do bem jurídico a ser protegido". Veja-se:

"Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo:
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
(...)
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:
IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear.
§ 1º. O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido". (grifamos).

No caso, os alegados danos aos cotistas revelaram-se após a introdução da obrigatoriedade da utilização do critério da "marcação a mercado" para a avaliação contábil dos títulos e valores mobiliários componentes das carteiras dos fundos de investimento.

Anteriormente, o critério de contabilização utilizado na prática dos gestores dos fundos de investimento era o da "marcação de curva", no qual os títulos eram contabilizados pelo valor de compra mais a variação da taxa desde a emissão do papel até o seu vencimento. Nesse caso, as quotas dos fundos de investimento não apresentavam variações negativas, mesmo que os títulos da carteira do fundo perdessem valor de mercado.

A fim de assegurar a transparência do mercado financeiro, a Comissão de Valores Mobiliários ("CVM") e o Banco Central do Brasil ("BACEN") editaram normas reguladoras de definição dos critérios de avaliação contábil dos fundos de investimento no país, impondo às instituições financeiras a adoção do critério da "marcação a mercado". Foi o que previram a Circular BACEN n. 3086, de 15.2.2002, e a Instrução CVM n. 365. Veja-se:

- Circular BACEN n. 3086, de 15.2.2002:

"Art. 1º Estabelecer que os títulos e valores mobiliários integrantes das carteiras dos fundos de investimento financeiro, fundos de aplicação em quotas de fundos de investimento, fundos de aposentadoria programada individual e fundos de investimento no exterior devem ser registrados pelo valor efetivamente pago, inclusive corretagens e emolumentos (...)."

- Instrução CVM n. 365, de 17.12.2001:

"Art. 14. As cotas do fundo devem ter seu valor calculado pelo menos por ocasião das demonstrações financeiras mensais e anuais mediante a utilização de metodologia de apuração do valor de mercado dos direitos creditórios e dos demais ativos financeiros integrantes da respectiva carteira, de acordo com critérios consistentes e passíveis de verificação, amparada por informações externas e internas que levem em consideração aspectos relacionados ao devedor, aos seus garantidores e às características da correspondente operação".

A "marcação a mercado" pode trazer oscilação negativa para os fundos. Segundo essa regra, os cálculos para o valor dos papéis leva em conta o preço efetivo de mercado do título no dia, de acordo com a média dos negócios realizados com papeis similares. Isso significa que, dependendo das condições do mercado, a cota pode ter variação positiva ou negativa.

Segundo a argumentação da autora, as oportunidades de investimentos ofertadas pela instituição financeira eram em fundos de renda fixa e fundos de renda pós-fixada com base na taxa de depósitos interfinanceiros (DI), os quais, para atuarem, deviam possuir, no mínimo, 80% (oitenta por cento) de sua carteira aplicada em títulos públicos do Tesouro Nacional. Conforme arrazoado pela autora, esses títulos sofreram forte desvalorização entre meados de 2001 e de 2002, em razão da insegurança do mercado para com os possíveis resultados das eleições presidenciais e as diretrizes econômicas do novo governo.

Nesse contexto, a utilização do critério da "marcação de curva" resultava em valores irreais das quotas dos fundos de investimentos, os quais sofreram forte desvalorização após a adoção mandatória do critério da "marcação de mercado", quando os valores das quotas passaram a refletir o valor real de mercado dos ativos e direitos creditórios dos fundos, com resultado em prejuízos para os cotistas.

No caso, segundo a autora, a utilização do critério da "marcação de mercado", aliada à veiculação, pelas instituições financeiras, de farta propaganda para a afirmação da segurança e do perfil conservador dos investimentos em fundos de renda fixa e em fundos pós-fixados (DI), teria resultado na captação de milhares de pequenos investidores, os quais, alegadamente, foram surpreendidos pelas perdas a que foram submetidos.

Segundo o entendimento do voto condutor do acórdão, contudo, as diferenças existentes no tratamento individual de cada fundo de investimento de renda fixa impediriam o reconhecimento da dimensão coletiva da demanda, a qual seria necessária para configurar o relevante interesse social, a fim de dispensar o requisito temporal de constituição da associação para a sua legitimação extraordinária à defesa dos interesses de seus associados.

Os fundos de renda fixa - diversamente das cadernetas de poupança, cuja rentabilidade é fixada igualmente para todos os investidores -, têm as suas características dadas pelas partes, mediante livre negociação, a variar conforme o montante investido, o perfil de risco do cliente e o nível de gerência, dentre outros fatores. Essa variabilidade essencial impediria a formação de um núcleo de homogeneidade que desse uma dimensão coletiva aos interesses envolvidos e, assim, que viabilizasse a sua tutela coletiva.

Esses pontos foram ressaltados pela Ministra Maria Isabel Gallotti, relatora para o acórdão, citando as declarações do promotor de justiça Edson Luiz Peters, que atuou no caso. Confira-se, "in verbis":

"Conforme destacado pelo Promotor de Justiça Edson Luiz Peters, ?cada fundo de investimento de renda fixa detém características e relacionamento com distintos cotistas (...). É diferente da caderneta de poupança garantida pelo Governo Federal, e que tem índices de correção e juros pré-fixados em normas federais emanadas do próprio Governo Federal, exatamente iguais para todos os investidores. (...). Quando se trata de aplicações não populares o que se tem é um tratamento individual heterogêneo, pois se estabelece a livre negociação entre quem tem o capital a ser aplicado e o banco captador ou administrador do fundo, com margem maior ou menor de negociação variando de acordo com o montante, perfil do cliente, nível de gerência, etc. (e-STJ fl. 392).
Observo que, no caso em exame, alega a associação autora que os prejuízos reclamados revelaram-se quando a edição e regras pelo Banco Central e pela Comissão de Valores Mobiliários a propósito dos critérios de avaliação contábil dos fundos de investimento existentes em todo o país em 2002. A partir de então, as instituições financeiras passaram a ser obrigadas a adotar a ?marcação a mercado?, ou seja, os valores sendo contabilizados pelo preço do dia e não mais pela variação da média mensal estimada, a chamada ?marcação de papéis pela curva de juros?.
Conforme admitido pela própria inicial, o efeito da nova regulamentação foi diverso em cada fundo, a depender do tipo de investimento nele predominante. Registro, neste ponto, que a inicial não esclarece quais os específicos fundos de investimentos dos quais eram titulares cada um de seus associados, limitando-se a afirmar genericamente que os mais prejudicados foram os fundos que tinham capital investido em papéis do governo.
Não se cuida, ao meu sentir, data máxima vênia, de pretensão e caráter homogêneo, relacionada à poupança popular."

Por fim, como assentado no voto da Ministra, o reconhecimento da impossibilidade da tutela coletiva dos direitos titularizados pelos cotistas de fundos de investimento de renda fixa não contraria a jurisprudência pregressa do STJ, que reconhece a existência de interesses social relevante na defesa dos interesses dos consumidores de investimentos no mercado financeiro [1]. Os precedentes da Corte, nesse sentido proferidos, cuidam de contratos de caderneta de poupança e, assim, não podem ser enxertados em casos de fundos de renda fixa, dada a ausência de similitude fática entre as situações examinadas.

Nota

[1] Dentre os precedentes citados no acórdão, cf. Agrg nos EDcl no REsp 138491/SC, Terceira Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, J. 5.5.2015, DJe 12.5.2015; REsp 106688/PR, Segunda Seção, Rel. Min. César Asfor Rocha, J. 28.3.2011, DJ 5.8.2002, p. 196; REsp 121067/PR, Quarta Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, J. 17.4.2001, DJ 25.6.2001.


 
Elaborado por:
Marcio Pedrosa Junior
Especialista em Direito Tributário pela Faculdade Milton Campos. Advogado.
E-mail: mpj@marizsiqueira.com.br