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STJ reafirma inaplicabilidade do CDC para contratos de transporte marítimo firmados entre pessoas jurídicas
Paulo Coviello Filho*

Artigo - Federal - 2016/3551

No último dia 18 de outubro, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio do Recurso Especial n. 1.391.650 - SP, reafirmou entendimento consolidado naquela corte no sentido da inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) [1] para relações contratuais relacionadas ao transporte marítimo. No caso, o STJ acolheu o recurso de uma transportadora para rejeitar a aplicação do CDC em disputa que versava sobre a responsabilidade da transportadora sobre danos sofridos pela carga transportada durante o transporte.

O processo é originário do Tribunal de Justiça de São Paulo. Inicialmente a demanda foi julgada extinta, tendo o juízo de 1ª instância reconhecido a decadência da demanda, nos termos do art. 754 do Código Civil [2], segundo o qual o contratante tem dez dias após o recebimento da carga para ajuizar ação relativa a perda parcial ou avaria não perceptível à primeira vista. Segundo consta da decisão, a mercadoria foi entregue no dia 17.11.2004, enquanto a ação foi ajuizada em 23.12.2004, ou seja, 36 dias após a entrega.

Em face dessa decisão, o autor interpôs recurso de apelação, no qual pleiteou a aplicabilidade do CDC, mais precisamente do art. 26, inciso II, segundo o qual "o direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: (II) noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis."

Pois bem. A 20ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, em julgamento decidido por votação unânime, deu provimento ao recurso de apelação da autora, reconhecendo a aplicabilidade do CDC a esse tipo de relação, afastando, consequentemente, a decadência reconhecida pela decisão de origem. Confira-se a ementa do julgado:

"Transporte marítimo Carga Avaria. Prazo decadencial de 90 dias. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor no caso concreto Relação de consumo configurada entre a transportadora e a segurada Protesto interruptivo desse prazo operado antes do seu término, considerando-se, ainda, as avarias e ausência de lacre no container utilizado no transporte da carga que estaria avariada Decadência afastada Recurso provido para esse fim, com o prosseguimento da lide regressiva em Primeiro Grau."
(Relator(a): Cunha Garcia; Comarca: Santos; Órgão julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 27/02/2012; Data de registro: 15/03/2012; Outros números: 7177069700)

Em face dessa decisão, a empresa apelada interpôs recurso especial, pugnando pela reforma do acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo e o restabelecimento da sentença de piso, que havia reconhecido a inaplicabilidade do CDC a esse tipo de relação, o que acarretou no reconhecimento da decadência.

Foi nesse cenário que a Terceira Turma do STJ, em julgamento decidido por votação unânime, restabeleceu a sentença de piso que julgou o processo extinto ao reconhecer a decadência. Veja-se a ementa do referido acórdão:

"RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE MARÍTIMO DE CARGAS. AVARIAS.
RESPONSABILIDADE CIVIL. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. NÃO INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
- Ação ajuizada em 10/02/2006. Recurso especial interposto em 24/07/2012 e distribuído a este gabinete em 25/08/2016.
- Inaplicabilidade do CDC, como regra geral, aos contratos de transporte marítimo pela dificuldade de enquadramento como consumidor das partes contratantes.
- Ausência de demonstração de vulnerabilidade de uma das partes para a aplicação da legislação consumerista.
- Recurso especial conhecido e provido."
(REsp 1391650/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/10/2016, DJe 21/10/2016)

Após definir o transporte marítimo como um contrato em que alguém se obriga, mediante pagamento de um frete, a transportar determinada carga de um lugar para outro, o voto condutor da decisão de lavra da Relatora Ministra Nancy Andrigui afirmou que o entendimento mais recente do STJ é no sentido da inaplicabilidade do CDC nesse tipo de relação contratual entre duas pessoas jurídicas.

De fato, a decisão reconheceu que no passado o próprio STJ havia entendimento de que o CDC era aplicável à esse tipo de situação, pois o embarcador, e não o consignatário da carga, era consumidor no serviço, nos termos do art. 2º do CDC, em razão de ser o destinatário final da mercadoria. Nesse sentido, foram citados os seguintes precedentes: REsp 302.212/RJ, Rel. Min. Castro Filho, DJ de 27.6.2005; REsp 286.441/RS, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 3.2.2003.

Todavia, destacou que a jurisprudência mais recente do STJ é no sentido da inaplicabilidade do CDC sobre contratos de transporte marítimo de cargas. Nesse sentido, foram citados os seguintes julgados: REsp 1.417.293/PR (Terceira Turma, julgado em 19.8.2014, DJe 2.9.2014); AgRg no REsp 1.481.134/RS, (Terceira Turma, julgado em 12.2.2015, DJe 27.2.2015); e REsp 1.076.465/SP (Quarta Turma, julgado em 8.10.2013, DJe 25.11.2013).

Para fundamentar o seu entendimento, a decisão afirmou que a linha de entendimento majoritária do STJ só admite a incidência do CDC nos contratos entre pessoas jurídicas em caráter excepcional, quando restar comprovada a vulnerabilidade de uma das partes, aspecto que não foi objeto de discussão nos autos. Sobre esse tema, a decisão transcreveu trecho do REsp n. 1.417.293/PR, acima citado, e que merece ser reproduzido aqui:

"16. Ora, a natureza da relação estabelecida entre as pessoas jurídicas - se de consumo ou puramente empresarial - não pode ser qualificada a partir de uma análise feita exclusivamente pelo prisma dos contratantes, à margem de qualquer reflexão sobre o contexto no qual se insere o contrato celebrado.
17. É dizer, se o vínculo contratual entre as partes é necessário para a consecução da atividade empresarial (operação de meio), movido pelo intuito de obter lucro, como indiscutivelmente o é na espécie, não há falar em relação de consumo, ainda que, no plano restrito aos contratantes, um deles seja destinatário fático do bem ou serviço fornecido, retirando-o da cadeia de produção.
(...)
23. Não por outro motivo, o STJ só admite a incidência do CDC nos contratos celebrados entre pessoas jurídicas em situações excepcionais, quando evidente que uma delas, embora não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, apresenta-se em situação de vulnerabilidade em relação à outra. (...)
24. E a vulnerabilidade, ainda nas palavras de Claudia Lima Marques, é a situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de diretos, desequilibrando a relação de consumo. (Obra citada. p. 73)." (destaques do acórdão)

É importante ressaltar que o entendimento acima exposto propõe uma relativização da chamada "Teoria Finalista". Essa teoria, grosso modo, entende que o CDC só seria aplicável nas relações entre pessoas jurídicas nas situações em que a pessoa jurídica fosse destinatária final do serviço ou produto. É o caso, por exemplo, da pessoa jurídica que adquire um computador que será utilizado em suas atividades. Todavia, não é o caso de uma empresa que recebe bens para revenda posterior ou mesmo para utilização em seu processo produtivo, como insumos.

O STJ tem abrandado essa "Teoria Finalista", admitindo a aplicabilidade do CDC mesmo para situações em que a pessoa jurídica não é destinatária final do produto ou serviço, quando comprovada a situação de vulnerabilidade da pessoa jurídica "consumidora". Nesse diapasão, a Terceira Turma do STJ consignou, no julgamento do AgRg no AREsp 837.871/SP, de 26.4.2016, que observada a vulnerabilidade da pessoa jurídica na relação, admite-se a aplicabilidade do CDC. Veja-se a ementa do referido julgado:

"AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RELAÇÃO DE CONSUMO. TEORIA FINALISTA MITIGADA. VULNERABILIDADE. REVISÃO DO JULGADO. INVIABILIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
1. A alteração das conclusões adotadas pela Corte de origem implica, necessariamente, novo exame do acervo fático-probatório constante dos autos, providência vedada em recurso especial, conforme o óbice previsto no enunciado n. 7 da Súmula desta Corte Superior.
2. A jurisprudência desta Corte tem mitigado a teoria finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), embora não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade, o que foi configurado na hipótese dos autos.
3. Ademais, tendo o Tribunal local concluído com base no conjunto fático-probatório dos autos, impossível se torna o confronto entre o paradigma e o acórdão recorrido, uma vez que a comprovação do alegado dissídio jurisprudencial reclama consideração sobre a situação fática própria de cada julgamento, o que não é possível de ser feito nesta via excepcional, por força do enunciado n. 7/STJ.
4. Agravo regimental a que se nega provimento."
(AgRg no AREsp 837.871/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 29/04/2016)

Nesse contexto, a decisão ora comentada reafirmou a jurisprudência majoritária daquela Corte, reconhecendo a inaplicabilidade do CDC para os contratos de transporte marítimo firmados entre pessoas jurídicas, consignando a possibilidade de aplicação excepcional da legislação consumerista na hipótese de comprovada vulnerabilidade da empresa consumidora do bem ou serviço, o que não foi objeto de discussão nos autos.

Notas

[1] Lei n. 8078, de 11.9.1990.

[2] "Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.

Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias a contar da entrega."

 
Paulo Coviello Filho*