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Insegurança jurídica em tempos de exceção: a importância do compliance criminal para a atividade empresarial brasileira
Theodoro Balducci de Oliveira*

Artigo - Federal - 2016/3549

Parece já não haver mais dúvidas de que vivenciamos tempos de exceção. A Operação Lava Jato e a midiática e rasteira polarização do debate jurídico entre bem e mal - e entre cidadãos de bem e criminosos - esvaziou, pela pena de um Poder Judiciário que parece desconhecer suas funções em um Estado Democrático de Direito, a força normativa de cláusulas constitucionais e legais que impõem (ou impunham) necessárias peias ao exercício do poder punitivo.

A guinada jurisprudencial da Corte Suprema que, no julgamento do habeas corpus nº 126.292/SP [1], incendiou o inciso LVII do artigo 5º da Constituição da República para desconstruir o significado do termo \"trânsito em julgado\" - como se se tratasse de instituto sujeito a releituras - e alterar o conteúdo semântico da presunção de inocência, enfraquecendo-a, logo se mostrou definitiva com a decisão denegatória de liminar nas ações declaratórias de constitucionalidade nº 43 e 44 [2], cujo objetivo é a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal - que, por sua vez, reproduz a garantia constitucional -, em uma clara demonstração de que a lei como limite do que pode dizer o Poder Judiciário já não é mais o norte a ser perseguido.

A decisão repercutiu em todo o País. O julgamento do habeas corpus nº 126.292/SP se deu em 17.02.2016 e o julgamento liminar das ações declaratórias de constitucionalidade nº 43 e 44, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, ocorreu em 05.10.2016. Em 22.09.2016 a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, atenta a uma Corte Suprema que parece dar de ombros para o texto que tem por mister defender para se sentir legitimada pelo afago popular, decidiu que as investigações e ações penais decorrentes da Operação Lava Jato constituem \"caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro\", de sorte que, \"em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns.\" [3] Ou seja: por se tratar de situação excepcional, a Operação Lava Jato, diz o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, não estaria necessariamente sujeita ao regramento jurídico pátrio. Não surpreende, pois, a baixa taxa de sucesso dos recursos e ações de impugnação manejados pelas defesas contra as decisões proferidas pelo Juízo de primeira instância no âmbito da Operação Lava Jato. O Tribunal que as aprecia entende que a legislação brasileira não se lhe aplica - ou é aplicável apenas em parte.

Em 30.10.2016, um Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal autorizou em desfavor de estudantes que se manifestavam contra a então Proposta de Emenda Constitucional nº 241 (atualmente Proposta de Emenda Constitucional nº 55, em trâmite perante o Senado Federal) a desocupação, pela Polícia Militar, do Centro de Ensino Asa Branca de Taguatinga com uso de técnicas de tortura, tais como: suspensão de fornecimento de energia, água e gás; suspensão do acesso de terceiros ao local (especialmente parentes dos manifestantes); suspensão de acesso de alimentos ao local e uso de instrumentos sonoros contínuos, para impedir o sono [4].

O objetivo do Magistrado era criar um cenário de extremo desconforto aos estudantes, para que estes deixassem as instalações. Não se pode dizer, pois, que os estudantes foram efetivamente torturados porque não eram obrigados a ali permanecerem. Mas o despudor com que se determina a utilização de técnicas de tortura em desfavor de adolescentes, a despeito da garantia constitucional de que \"ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante\" (art. 5º, III, CF), demonstra que o Poder Judiciário já não se vê limitado pela legislação (constitucional e infraconstitucional) pátria.

Seguindo na interpretação casuística do ordenamento jurídico e contra a literalidade da lei - sempre em desfavor do sujeito passivo da investigação ou ação penal -, uma Juíza de Direito no Rio de Janeiro/RJ deferiu, em 21.11.2016, expedição de mandado de busca e apreensão coletivo na Cidade de Deus, sem prazo determinado, asseverando que \"em tempos excepcionais, medidas também excepcionais são exigidas com intuito de restabelecer a ordem pública\" [5]. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro anulou a referida decisão em sede habeas corpus coletivo impetrado pela Defensoria Pública do referido estado alguns dias depois, mas os efeitos deletérios - e instrumentais - da incontestável ilegalidade já se haviam operado.

A lei, pois, já parece dizer muito pouco a um Poder Judiciário que se vê imbuído do combate ao crime e da satisfação da opinião pública. A lei passa a ser, nestes tempos sombrios, meramente mais um dos muitos alicerces considerados pelo Magistrado na tomada de decisão: não é o único e muito menos o mais importante.

Assim, garantias processuais são lidas como contributos a uma suposta impunidade que se quer deixar para trás e princípios penais como os da legalidade, taxatividade, intervenção mínima e ofensividade parecem orientar mais teses acadêmicas do que decisões judiciais. Relação de causalidade e omissão penalmente relevante passam a se apresentar como conceitos fluidos, mutáveis ao talante do acusador oficial e preenchidos por uma retórica sensacionalista que analisa os fatos de trás para frente, depois de já ocorridos, e não a partir do decurso natural dos acontecimentos e do que seria exigível do imputado em questão.

Nesse contexto de incertezas, o compliance criminal assume especial relevância para mitigar os riscos dos gestores e da própria pessoa jurídica no exercício da atividade empresarial. Para tanto, porém, é necessário que não se trate apenas e tão somente de elaborar códigos de conduta que reflitam a positivação do óbvio e de cumprir a legislação, não incidindo nas condutas descritas pelos tipos penais existentes. Para além disso, o que se busca com uma governança minimamente eficaz - e hábil a afastar, em alguma medida, imputações penais mesmo nestes tempos de exceção, em que o limite da liberdade individual mostra-se nebuloso - é a adoção de rigorosos padrões de conduta que enxergam o limite do aceitável muito antes de qualquer atividade que se possa ter como fronteiriça do que seria penalmente relevante. Segundo Iván Navas Mondava (apud SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo, 2015, p. 120, tradução minha) \"[o] compliance criminal não consiste em assessorar a empresa para que estabeleça uma normativa interna que a permita mover-se no fio da navalha, mas para que cumpra o disposto nos códigos de ética. Por esta razão, ao compliance não interessam necessariamente os complexos debates do Direito penal econômico acerca de se a conduta A é típica ou constitui outro tipo penal de ilícito. O cumprimento normativo deve começar normalmente muito antes do tipo penal.\"

A autoria delitiva em um contexto de criminalidade empresarial é também questão sempre tormentosa, não sendo infrequentes considerações doutrinárias e jurisprudenciais \"no sentido de ampliar, ainda que de forma oblíqua, a responsabilidade de sócios e diretores de pessoas jurídicas por cometimentos ilícitos no âmbito das empresas\" (MACHADO, 2001, p. 120-121). Para Renato de Mello Jorge Silveira e Eduardo Saad-Diniz (2015, p. 132), por exemplo, seria plenamente possível \"estabelecer a responsabilidade comissiva por omissão do empresário que não estabeleça um compliance program, ou que estabeleça um compliance program deficiente ou propositalmente ineficaz, violando, assim, o dever de cuidado que deveria ter em relação à criminalidade empresarial. Logo, à luz da realidade brasileira, o dever de garante estaria firmado normalmente em leis especiais que determinam a obrigação dos programas mencionados.\" Estes autores (2015, p. 141) ressaltam, no entanto, que \"os empresários, mesmo no papel de garante, podem delegar seus encargos para terceiros, efetuando uma transferência e transformação na posição de garante a terceira pessoa, no caso, o compliance officer\", o que demonstra, uma vez mais, a importância de um bom programa de governança para a atividade empresarial no Brasil.

Obviamente, explicam José Danilo Tavares Lobato e Jorge Washington Gonçalves Martins (2016, p. 13), \"esse profissional somente poderá ser responsabilizado recorrendo-se à estrutura típica da omissão imprópria, ou seja, por meio da construção de um dever de evitar a prática de crimes que sejam correlatos à atividade empresarial e estejam dentro do âmbito de sua competência profissional\". Será responsável, pois, se \"não vigiar o cumprimento do seu programa e, em razão dessa falha, crimes forem cometidos\" (LOBATO; MARTINS, 2016, p. 13). No entanto, como bem lembram Helena Regina Lobo da Costa e Marina Pinhão Coelho de Araújo (apud SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo, 2015, p. 144), é certo que a estrutura do compliance não dita os rumos da companhia, sendo apenas \"o alerta sobre os riscos evidentes e inerentes às decisões\" a serem tomadas, não se podendo cogitar \"que o compliance officer pode e deve fazer o impossível para evitar qualquer tipo de conduta ilícita ou indesejada\". Assim, acaso identifique o crime e os autores do ilícito penal e faça o devido reporte a seus superiores, o referido profissional estaria exonerado de qualquer responsabilidade penal por não ter \"poder de correção e nem o dever de informar as autoridades públicas\" (LOBATO; MARTINS, 2016, p. 13). Em tal hipótese, o dever de garante, que até então havia sido delegado ao compliance officer pelos gestores, é lhes devolvido de forma qualificada, sendo clara sua responsabilidade criminal por qualquer omissão subsequente.

Destarte, especialmente em um contexto de fluidez de fontes normativas e pouco apreço à literalidade legal por parte do Poder Judiciário, a atividade empresária encontra-se sujeita a riscos, que podem e devem ser mitigados por meio de programas sérios de governança. O setor de compliance, uma vez devidamente estruturado, mostra-se, assim, um importante aliado dos gestores na execução das boas práticas empresariais e como atenuador de sua responsabilidade em caso de evento criminoso na atividade da companhia.

O bom programa de compliance criminal se mostra indispensável para as empresas no Brasil, portanto, não apenas porque visa a um standart de conduta que se distancia largamente daquela inserida no tipo penal ou que poderia ser assim interpretada por alguma corrente doutrinária ou jurisprudencial, mas também porque diminui em larga medida o risco de seus gestores, ao transferir para o compliance officer a posição de garante no que toca à fiscalização dos comportamentos praticados no seio da empresa. Em tempos de exceção e de mudança de paradigma do direito penal, parece realmente impensável empreender sem o amparo de um sério e efetivo programa de compliance criminal.

Referências bibliográficas

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ. Compliance, Direito Penal e lei anticorrupção. São Paulo: Ed. Saraiva, 2015, 358 p.

MACHADO, Hugo de Brito. Responsabilidade penal no âmbito das empresas, p. 109-135. In: SALOMÃO, Heloisa Estellita (Coord.). Direito Penal Empresarial. São Paulo: Ed. Dialética, 2001, 303, p.

LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINS, Jorge Washington Gonçalves. Considerações preliminares acerca da responsabilidade criminal do compliance officer. Boletim IBCCRIM, nº 284, jul. 2016, p. 12-14.

Notas

[1] STF, HC 126.292/SP, Rel. Ministro Teori Zavascki, julgado em 17.02.2016.

[2] STF, ADC?s 43/DF e 44/DF, Rel. Ministro Marco Aurélio.

[3] TRF4, Corte Especial, P. A. 0003021-32.2016.4.04.8000/RS, Rel. Des. Federal Rômulo Pizzolatti.

[4] Disponível em: http://justificando.com/2016/11/01/juiz-autoriza-tortura-para-desocupacao-de-colegio-no-distrito-federal/. Acesso em 04.12.2016.

[5] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-nov-22/juiza-rj-autoriza-busca-apreensao-coletiva-cidade-deus. Acesso em 04.12.2016.